Publicado originalmente em 13/12/2013 na coluna Espaço LGBT do jornal ES Hoje. Ligeiramente adaptado em relação ao texto do jornal.
Confesso
que me irrita esta época em que toca música de Natal em toda parte - e a
irritação chega ao máximo quando aparece a única música brasileira usual nesse
repertório: aquela “Papai Noééél... vê se você tem / a felicidade / pra você me
dar”.
Por que me irrita tanto? Porque as pessoas a cantam festivamente, sem dar
a mínima para o fato de a letra ser uma denúncia da falsidade dessa mesma
festividade, e um gemido de dor de uma vítima de todo tipo de opressões e
rejeições. [Veja letra completa ao final]
Nascido
em pobreza no interior da Bahia, muito cedo o negrinho Assis Valente foi arrancado
dos pais - e da infância - para ser
criado trabalhando.
A sorte pelo menos lhe deu um patrão diferenciado, pois
aos 10 anos, além de prático em farmácia, o menino tinha surpreendente
conhecimento de literatura. Quando os artistas de um circo passaram necessidade
devido à indiferença da cidade, o menino intercedeu por eles com tal eloquência
que acabou ganhando do circo uma carona para o mundo. Aos 16 chega ao Rio, já
profissionalizado em Salvador como protético. Aos 20 compõe seu primeiro samba,
e aos 21 essa paradoxal marchinha de Natal, num quarto solitário de Niterói.
Sensível,
de inteligência brilhante... mas baiano, preto, pobre e gay numa metrópole
falsamente tolerante, foi com certeza em busca de respeito que aos 30 se casou
- para 4 meses depois se atirar do Corcovado num dia 13 de maio. Agonia dupla, o que era pra ser um desfecho
trágico emblemático termina quase ridículo: fica enroscado em árvores e é
resgatado pelos bombeiros.
Mas
nosso Valente morreria mesmo de suicídio, na terceira tentativa, aos 47 anos.
Dando continuidade à hipocrisia, grande parte das biografias diz apenas:
“devido a dívidas”. Mas como, o autor
de Camisa Listrada e Brasil Pandeiro, entre 153 composições?
Tímido, reservado, Assis vivia sozinho e pagava
para satisfazer a necessidade de atenção, de toque e de calor de corpo que todo
ser humano tem - cada um a seu modo. E, com o senso de dignidade hipersensível
devido a tantas violações, era um prato cheio para chantagistas.
Um
dia se dirigiu a um parque infantil, pôs formicida num guaraná, e partiu. Como
quem buscasse a porta da infância perdida.
É
por isso que eu acho: ninguém deveria ter o direito de cantar Boas Festas, senão assumindo o
compromisso de lutar contra as causas do suicídio do valente Assis. Vamos
crescer, gente: Papai Noel não trará mesmo a felicidade para ninguém. Pois ele
nem existe. Quem existe somos nós - e somos nós
os responsáveis pelo que houver de felicidade ou de infelicidade no mundo.
Que
tal lutar por um mundo sem crianças forçadas a trabalhar? E um Natal em que
gays, lésbicas e trans não precisem chorar longe de suas famílias, como única
alternativa a serem humilhados por elas? Em que possam festejar junto a todas
as pessoas que amam, sem separar?
Se
alguém vê imoralidade nisso, desculpe, mas não faz ideia do que seja o Bem. E,
bem traduzido, o que o canto natalino dos anjos diz é “paz na Terra às pessoas que almejam o Bem”. Assim seja!
Letra completa da canção "Boas Festas",
de Assis Valente (1932)
de Assis Valente (1932)
Anoiteceu, o sino gemeu
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
E a gente ficou feliz a rezar
Papai Noel, vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
E assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que eu pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem
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