Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

29 julho 2013

ENTRE A DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E A LIVRE COOPERAÇÃO: a humanidade em sua longa encruzilhada - inclusive o Brasil (capítulo 1/6)

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ENTRE A DOMINAÇÃO DO IMPÉRIO E  A LIVRE COOPERAÇÃO: A HUMANIDADE EM SUA LONGA ENCRUZILHADA - INCLUSIVE O BRASIL (1/6)

Ralf Rickli - julho de 2013

1. PRÓLOGO:  AS FORÇAS EM JOGO DESDE QUE EXISTE GENTE

Para enfrentar o modesto propósito de resumir a história da humanidade em três páginas como introdução ao dia de hoje, “comecemos pondo de lado os fatos” (como disse um dia um certo Rousseau), ficando apenas com as estruturas que estão por trás da maior parte deles. Modestamente...

1.1   A quase totalidade dos problemas da humanidade deriva de um só, que é um detalhe estrutural do caráter humano: a vontade que cada pessoa sente de dominar outra(s) pessoa(s). Em outras palavras: a vontade de usar sua liberdade para destruir liberdades de outros.

1.2   Liberdade é a condição de poder exercer sua própria vontade (fazer o que se quer). A liberdade é individual por natureza: se refere a cada um.

1.3   Igualdade é o coletivo de liberdade. É a condição de cada integrante de um conjunto de  seres humanos poder exercer sua própria vontade, nenhum com menos possibilidades que outro. Portanto, ao contrário do que alguns pensam, a igualdade não se opõe à liberdade, e sim a leva ao máximo possível no plural (qualquer número de dois para mais).

1.4   Individualismo, entendido com honestidade, só pode significar “cada um exercer sua vontade nos limites do que é capaz sozinho: sem colaboração nem serviço de nenhum outro”. Já se provou que um ser humano dificilmente sobrevive nessas condições, e se sobrevive não realiza nada além de sobreviver. (Se chega a realizar, já não é de modo verdadeiramente individualista, pois é com capacidades que absorveu dos outros membros  de uma coletividade, ao crescer. Sem coletividade, nenhum filhote de Homo chega a se efetivar como sapiens).

1.5   Fraternidade, solidariedade ou cooperação é associar as vontades individuais para a realização coletiva de fins que beneficiem a todos os integrantes de uma coletividade. (Por brevidade, podemos admitir a palavra “desenvolvimento” para essa realização de benefícios). Isso depende de cada um ceder um pouco da sua liberdade, para harmonizá-la com as dos outros, enquanto quiser fazer parte da coletividade. Das formas possíveis de desenvolvimento, esta é a que se empenha em não se afastar da igualdade (ou afastar-se o menos possível). Importante: a neurociência mostrou que o ser humano é biologicamente capacitado para isso mediante o “circuito da empatia”.

1.5.1   Pode-se dizer que organização fraterna ou cooperativa é horizontal, pois as pessoas ficam mais ou menos em um mesmo nível de poder.

1.5.2   “Esquerda” é uma designação tradicional da busca por uma sociedade de cooperação igualitária e horizontalidade em geral. Se muitos pensam que “esquerda” se refere a uma busca de fortalecimento do poder do Estado, isso decorre da problemática que será abordada em 1.7 (a tentativa de usar o Estado em defesa da igualdade).

1.6   Tirania, ou dominação é uma pessoa usar sua liberdade para se apropriar da liberdade de outra(s). Com a dominação, a vontade de uma só pessoa passa a dispor da força de outra(s) para se realizar: em lugar de dispor de 2 braços, passa a dispor de 4 braços, ou de 40, ou mesmo de, p.ex., 400 mil. O dominador se torna como que sobre-humano às custas da sub-humanização ou desumanização de outros (pois um ser humano privado de liberdade está desumanizado).

1.6.1   Pode-se dizer que a dominação é vertical, em contraste com a horizontalidade da cooperação, mencionada em 1.5.1.

1.6.2   Cooperação entre dominadores para melhor dominar constitui oligarquia, o que (simplificando bastante) termina dividindo a coletividade em classes. Neste momento não é necessário distinguir entre os diferentes estilos e agentes históricos (p.ex. feudalismo e capitalismo, aristocracia e burguesia, etc.); o fundamento geral é que a classe dominante fica com os meios de produção (terra, máquinas, capital) e, para não sucumbirem todos à fome e outras necessidades, a classe sem meios termina cedendo sua força de trabalho para operar esses meios, formando uma sociedade intencionalmente desigual.

1.6.3   O objetivo da dominação é a própria dominação, ou seja: exercer poder sobre outro(s). Termos econômicos como “lucro” não comunicam claramente a natureza desse objetivo: o lucro só interessa por ser um meio de aumentar a reserva de poder do dominador.

1.6.3.1   Psicológica e neurologicamente, a efetivação do impulso de dominação só é possível em uma condição de psicopatia (incapacidade de sentir o que o outro sente), o que é deficiência do funcionamento do circuito da empatia referido em 1.5. (Voltaremos a isso no epílogo.)

1.6.4   A dominação é sempre imposta à força - seja força das armas, seja de trapaças econômicas que levam à necessidade, seja da difusão de crenças enganosas.

1.6.4.1   A violência inicial que institui a dominação costuma vir maquiada em termos como grandeza, nobreza, majestade. A palavra “violência” costuma ser reservada para as reações dos oprimidos contra a dominação - reações muitas vezes apontadas como “tentativa de dividir a sociedade”, quando apenas desnudam a divisão à força que fez a sociedade ser como é.

1.6.4.2   A maquiagem sistemática da dominação termina por constituir um vasto sistema de crenças que se reproduz de geração em geração, em parte automaticamente, em parte mediante ações intencionais. (Na linguagem marxista, a palavra ideologia se refere a esse sistema de crenças obscurecedoras, porém é preciso cuidado com essa palavra, pois também é usada com outros sentidos em outros sistemas de linguagem, e a maior parte das pessoas termina por usá-la com sentidos distintos em diferentes momentos).



1.6.5   O sentido original do Estado é a imposição de vontade dos tiranos através de grupos de trabalhadores cooptados e armados para isso. Nos termos tradicionais do interior do Brasil,  “os hómi do coronel”: jagunços, feitor, capataz, administrador etc.

1.6.5.1   Esse sistema de imposição de vontade costuma ser apresentado aos dominados como tendo a finalidade de protegê-los de perigos. Às vezes de fato há perigos reais que vêm de fora do conjunto, mas também pode se tratar de perigos inventados e propagandeados, ou mesmo de perigos reais criados com a finalidade específica de convencer que tal “proteção” é necessária.

1.6.5.2   O Estado raramente foi ele mesmo a cabeça do poder: geralmente é apenas meio de imposição do poder de alguma oligarquia, que normalmente nem é vista ou conhecida com clareza, pois faz o Estado se expor e se arriscar em seu lugar.

1.6.5.2.1   Portanto, a dominação se realiza sempre mediante conspiração. Onde há dominação, conspiração não é uma exceção e sim a regra. Para obscurecer esse fato, realiza-se a metaconspiração que é divulgar, por um lado, teorias de conspiração mirabolantes, irreais, e por outro, divulgar a crença de que conspirações não existem e que é ridículo dar crédito a toda e qualquer teoria de conspiração. Isso faz parte das operações da ideologia, no sentido exposto em 1.6.4.2.

1.6.6   “Direita” é uma designação tradicional de tudo o que busca a perpetuação da verticalidade, ou seja: da desigualdade e das estruturas de dominação. Muitas vezes, porém, a direita propõe a desmontagem do Estado, e aí muitos acreditam que ela está propondo liberdade e horizontalidade - quando se trata de uma forma mais refinada de dominação: ela pode (p.ex.) produzir uma relativa igualdade entre os dominados, enquanto controla as condições a partir de uma posição cada vez mais invisível e/ou maquiada por propaganda. Uma estrutura, obviamente, bem mais difícil de combater que a de uma dominação escancarada. (Comparar com “esquerda” em 1.5.2)

1.7   Onde houve tentativas de desfazer a dominação, retornando o poder à coletividade una e cooperativa, tentou-se também inverter o sentido original do Estado: um Estado Democrático seria um sistema de defesa da coletividade igualitariamente livre contra as tentativas de dominá-la e tiranizá-la. A ideia não é descabida, pois a tirania usa força: como resistir a ela sem também usar força?

1.7.1   Em relação a um Estado Democrático ideal, pode-se falar de uma verticalidade defensiva, cuja finalidade seria se contrapor à verticalidade da dominação para garantir que a coletividade possa permanecer organizada horizontalmente, ou seja: de modo fraterno.

1.7.2   Chegamos aqui ao drama central da Política, até hoje não resolvido: toda coletividade sem um sistema de defesa está de fato sujeita a ser apresada e tiranizada por forças externas. Mas a força que serve para defender é a mesma que serve para atacar. Como garantir que essa força não seja usada para tiranizar a própria coletividade que deveria defender? Ou seja: como evitar que o Estado Democrático passe a atuar como Estado Tirânico, seja a partir de si mesmo, gerando uma nova oligarquia (como aconteceu na sequência da Revolução Russa), seja associando-se às forças externas referidas acima (como em 1964 no Brasil)? (Sobre isso e a Revolução Russa, recomendo enfaticamente a seguinte fala de Noam Chomsky, por mais que isso venha a me custar pedradas de muitos: http://www.youtube.com/watch?v=zDJee4stYN0 )

1.7.3   A honestidade obriga a reconhecer que um Estado Democrático permanece como ideal: nunca foi plenamente realizado. Já houve tentativas significativas, mas poucas vezes duraram.

1.7.3.1   Isso parece dar razão aos anarquistas: melhor seria ter Estado nenhum desde já - mas esse “desde já” é totalmente ilusório: retire-se totalmente o Estado de uma coletividade, e ela logo será apresada pelo Estado vigente em outra coletividade, que com isso se expande como Estado Imperialista. Ou seja: enquanto subsistir alguma oligarquia no mundo, toda tentativa de implantar anarquismo levará apenas à submissão a senhores ainda mais remotos que os anteriores.

1.7.3.2   O próprio Marx entendia isso. Ele preconizava a tomada das estruturas de poder pelas classes trabalhadoras para em seguida desmontá-las, levando a uma sociedade sem classes e sem Estado: é isso o que ele entendia como “a Revolução”. Mas ele mesmo tinha claro que tal Revolução teria que ser mundial, numa só sequência de acontecimentos. Pois uma sociedade revolucionada meramente local seria logo conquistada por forças de dominação externas - ou então teria que parar no meio do processo (antes de atingir a condição igualitária desejada) para ter meios de se defender desses ataques externos - gerando mais uma vez um Estado potencialmente tão opressor quanto aqueles a que tenta resistir. De modo que a Dominação triunfa mais uma vez: ou invadindo diretamente a área revolucionada, ou gerando nela um espelhamento de si.

1.7.3.3   Isso sugere que de momento o melhor que se pode almejar (ou o menos ruim) é lutar pelo aperfeiçoamento do Estado Democrático - justamente no sentido de que seja efetivamente Democrático, inventando-se meios de impedir que se torne Tirânico como de costume - até que um dia existam condições mundiais para a abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo.

1.7.3.3.1   Mas não será pensável que já tenhamos atingido essas condições mundiais “para a abolição de todo e qualquer sistema de dominação, de uma vez em todo mundo”? Tentar lidar com essa questão em termos de reflexão genérica, como fizemos até aqui, seria uma futilidade suicida: aqui é forçoso saltar para dentro do conhecimento de fatos concretos, com localização definida no tempo e no espaço.

Próximo capítulo:
2. A REALIDADE DO IMPÉRIO: A TIRANIA MUNDIAL ATIVA
(quando eu conseguir!)
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Reflexões sobre junho-julho 2013: O NEGÓCIO DA REVOLUÇÃO, vídeo que TODOS precisam assistir!!

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Finalmente legendado em português - está aí um vídeo de 27 minutos que nenhum brasileiro pode deixar de assistir neste momento! (Só um detalhe: o original se chama THE REVOLUTION BUSINESS, e não "the business of revolution").
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Reflexões sobre junho-julho 2013: Movimento Occupy denunciou o fascismo dos Black Bloc já no início de 2012

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Esta matéria de CHRIS HEDGE, publicada nos EUA em 06/02/2012, mostra que, tanto lá como aqui, BLACK BLOCs e P2 são diferentes cepas DO MESMO VÍRUS - inoculados na sociedade por agentes DO MESMO IMPÉRIO, como VACINA ANTI-REVOLUÇÃO.

Título original: THE CANCER IN OCCUPY
http://www.truthdig.com/report/page2/the_cancer_of_occupy_20120206/
Tradução e notas entre colchetes: Ralf R.


Os anarquistas Black Bloc, que estiveram em ação nas ruas de Oakland e de outras cidades, são o câncer do movimento Occupy. A presença de anarquistas Black Bloc - chamados assim porque se vestem de preto, escondem a cara, se movem como massa unificada, buscam confrontos físicos com a polícia e destroem propriedades - é um presente do céu para o Estado da Segurança e Vigilância. Os acampamentos Occupy em várias cidades foram fechados justamente porque eram não violentos. Foram fechados porque o Estado percebeu seu amplo potencial de atração, até mesmo para os de dentro dos sistemas de poder. Foram fechados porque articularam uma verdade, sobre o nosso sistema econômico e político, que cruzava transversalmente as linhas políticas e culturais. E foram fechados porque eram locais onde mães e pais com carrinhos de bebê se sentiam seguros.

Os adeptos do Black Bloc detestam a nós que estamos na esquerda organizada, e procuram, bem conscientemente, nos arrancar nossos instrumentos de empoderamento. Confundem com revolução o que são atos de vandalismo banal e de repugnante cinismo. Os verdadeiros inimigos, eles argumentam, não são os capitalistas corporativos, e sim os seus colaboradores no meio dos sindicatos, dos movimentos de trabalhadores, dos intelectuais radicais, ativistas ambientais e movimentos populares como os zapatistas. Qualquer grupo que busca re-estruturar estruturas sociais, especialmente por meio de atos de desobediência civil não violenta ao invés de destruir fisicamente, se torna o inimigo, aos olhos dos Black Bloc. Anarquistas Black Bloc empregam a maior parte da sua fúria não contra os arquitetos do NAFTA (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio) ou da globalização, e sim contra os que reagem contra esse problema, como os zapatistas. É uma inversão de sistemas de valores grotesca.

Por não acreditarem em organização, e na verdade se oporem a todos os movimentos organizados, os anarquistas Black Bloc garantem sua própria impotência. Tudo o que eles conseguem ser é obstrucionistas. E são obstrucionistas principalmente para aqueles que resistem. John Zerzan, um dos principais ideólogos do movimento Black Bloc nos Estados Unidos, defendeu o desconexo manifesto "A sociedade industrial e o seu futuro", de Theodore Kaczynski, conhecido como Unabomber, mesmo se não endossou seus atentados. Zerzan é um feroz crítico de uma longa lista de supostos vendidos, a começar por Noam Chomsky. Anarquistas Black Bloc são um exemplo do que Theodore Roszak, em "The Making of a Counter Culture", chamava de "progressiva adolescentização" da esquerda estadunidense.

Em sua extinta revista Green Anarchy (que sobrevive como website), Zerzan publicou um artigo escrito por alguém chamado "Borboleta Venenosa” (Venomous Butterfly), que execrava o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). O artigo dizia que "os objetivos dos zapatistas não só não são anarquistas, como sequer são revolucionários. Também denunciou o movimento indígena por “linguagem nacionalista", pelo fato de defender que o povo tem direito de “alterar ou modificar sua forma de governo”, e por ter como objetivos “trabalho, terra, moradia, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz”. Tal movimento, o artigo afirmava, não seria digno de apoio pois não demandava "nada de concreto que não possa ser fornecido pelo capitalismo. "

"É claro que não se pode esperar", continuava o artigo, "que as lutas sociais dos explorados e oprimidos se adaptem a algum ideal anarquista abstrato. Essas lutas surgem em situações particulares, provocadas por eventos específicos. A questão da solidariedade revolucionária com essas lutas é, portanto, a de como intervir de um modo que sirva aos nossos próprios objetivos, de uma maneira que seja vantajosa para o nosso projeto revolucionário anarquista." [O original usa o eufemismo “one’s”, mas não há falseamento em traduzi-lo por “nosso”].

Solidariedade vem a ser então o sequestro ou destruição de movimentos concorrentes, o que é exatamente o que os contingentes Black Bloc estão tentando fazer com o movimento Occupy.

"Os Black Bloc podem dizer que estão atacando policiais, mas o que eles realmente estão fazendo é destruir o movimento Occupy", me disse o escritor e ativista ambiental Derrick Jensen quando o contatei por telefone na Califórnia. "Se o seu alvo fosse de fato a polícia, e não o movimento Occupy, os Black Bloc separariam completamente suas ações das do Occupy, em vez de efetivamente usar este último como escudo humano. Seus ataques a policiais são meramente um meio para outra finalidade, que é a de destruir um movimento que não se encaixa no seu padrão ideológico."

"Não vejo problemas no emprego de táticas de escalada [aumento gradativo de pressão que pode chegar a atos violento] para algum tipo de resistência militante, se isso for moral, estratégica e taticamente apropriado", prosseguiu Jensen. "Isso vale no caso de você levantar um cartaz, uma pedra ou uma arma. Mas você tem que ter refletido sobre isso. Os Black Bloc passam mais tempo tentando destruir movimentos que atacando quem está no poder. Eles odeiam mais a esquerda que os capitalistas."

"Seu modo de pensar não é apenas não estratégico, mas ativamente contrário à estratégia", disse Jensen, autor de vários livros, incluindo "The Culture of Make Believe" (A cultura do faz-de-conta). "Eles não estão dispostos a pensar criticamente sobre se a pessoa está agindo de forma adequada no momento. Não vejo problemas em alguém violar limites quando essa violação é a coisa mais inteligente ou apropriada a fazer - mas vejo enorme problema em pessoas que violam limites apenas para violar limites. É muito mais fácil pegar uma pedra e jogar na janela mais próxima do que organizar - ou que pelo menos descobrir em qual janela você deve jogar a pedra, se você for jogar uma pedra. Muito disso é preguiça."

Grupos de manifestantes Black Bloc, por exemplo, moeram as janelas de um café de propriedade local e o saquearam, em novembro, em Oakland. Não era, como Jensen aponta, um ato estratégico, moral ou tático. Foi feito por fazer. Atos de violência, saques e vandalismo são justificados, no jargão do movimento, como componentes de insurreição "selvagem" (feral) ou "espontânea." O movimento defende que atos desse tipo nunca podem ser organizados. Organização, no pensamento do movimento, implica hierarquia, que deveria ser combatida sempre. Não poderia haver restrições a atos de insurreição “selvagens” ou "espontâneos". Quem se machucar se machucou. O que for destruído se destruiu, não importa o quê.

Há um adjetivo para isso: "criminoso".

O movimento Black Bloc está infectado com uma hipermasculinidade profundamente perturbadora. Essa hipermasculinidade, tenho a impressão, é o seu apelo básico. Ela cutuca a volúpia de destruir que se esconde dentro de nós - destruir não apenas coisas, mas também seres humanos. Ela oferece o poder como de deuses que vem com a violência da turba. Marchar como massa uniforme, todos vestidos de preto para se tornarem parte de um bloco anônimo com rostos cobertos, isso supera temporariamente a alienação, os sentimentos de inadequação, impotência e solidão. Confere aos participantes da massa um sentimento de camaradagem. Permite que uma raiva indefinida seja descarregada em qualquer alvo. Piedade, compaixão e delicadeza são banidos pela intoxicação do poder. É a mesma doença que alimenta os enxames de policiais que jogam spray de pimenta e espancam manifestantes pacíficos. É a doença dos soldados em guerra. Transforma seres humanos em feras.

Erich Maria Remarque escreveu em "Nada de novo no front ocidental": "nós íamos em frente, sobrepujados por essa onda que nos carrega, que nos enche de ferocidade, nos transforma em bandidos, em assassinos, em só Deus sabe o que diabos: essa onda que multiplica a nossa força pelo medo e loucura e gana de viver, buscando e lutando por nada além de sair dali” [for our deliverance: impossível determinar, fora de contexto, se se trata de “libertação” ou de “dispensa” no sentido militar].

O estado corporativo [corporate state: neste contexto, o estado dirigido por interesses privados associados para seu bem comum] entende e aplaude a linguagem da força. As táticas do Black Bloc de confronto e destruição de propriedades, o estado corporativo as pode usar para justificar formas de controle draconianas e para incutir medo de apoiar o movimento Occupy nas camadas mais amplas da população. Uma vez o movimento Occupy seja pintado como uma multidão que queima bandeiras e joga pedras, estamos acabados. Se ficamos isolados podemos ser esmagados. A prisão de mais de 400 manifestantes em Oakland na semana passada, alguns dos quais haviam jogado pedras, carregado escudos caseiros e feito barricadas, são uma indicação da dimensão da escalada de repressão, e do nosso fracasso em permanecermos uma oposição unificada e não violenta. A polícia atirou gás lacrimogêneo, granadas de efeito moral e disparos "menos letais" para o meio das multidões. Uma vez na prisão, foram negados medicamentos cruciais aos manifestantes, os quais foram mantidos em celas superlotadas e tocados de um lugar para outro. Uma marcha em Nova York, chamada em solidariedade aos manifestantes de Oakland, viu alguns manifestantes imitarem as táticas dos Black Bloc em Oakland, inclusive jogando garrafas contra a polícia e despejando de lixo na rua. Eles gritavam "foda-se a polícia" e “racist, sexist, anti-gay / NYPD go away" (racista, sexista, anti-gay / cai fora, polícia de Nova York).

Esta é uma luta para conquistar os corações e mentes de um público amplo, bem como daqueles que estão dentro das estruturas de poder e são dotados de uma consciência (incluindo a polícia). Não é uma guerra. Movimentos não violentos de certa forma recebem a brutalidade policial com abraços. A tentativa continuada do Estado de esmagar manifestantes pacíficos, que reivindicam meros atos de justiça, deslegitima a elite do poder. Isso incita uma população passiva a reagir, traz alguns de dentro das estruturas de poder para o nosso lado, e cria divisões internas que produzem paralisia na rede dos canais de autoridade. Martin Luther King promoveu marchas em Birmingham repetidamente porque sabia que o Comissário de Segurança Pública "Bull" Connor era um vilão que iria se exceder na reação.

O clichê da "diversidade de táticas", alegado pelos Black Bloc para acabar com a reflexão, termina por abrir caminho para que centenas ou milhares de manifestantes pacíficos sejam desacreditados por um punhado de arruaceiros. O Estado não poderia ficar mais feliz. É aposta segura, que entre os grupos Black Bloc em cidades como Oakland se encontram agentes provocadores instigando-os a fazer mais confusão. Mas, com ou sem infiltração policial, o Black Bloc está servindo aos interesses do um por cento. Esses anarquistas representam a ninguém além de si mesmos. Os que agiram em Oakland, embora em sua maioria fossem brancos, e muitos de fora da cidade, repudiaram arrogantemente as lideranças afroamericanas de Oakland, que, junto com outros organizadores comunitários locais, deveriam ter determinado as formas de resistência.

O crescimento explosivo do movimento Occupy Wall Street se deu quando algumas mulheres que ficaram encurraladas atrás de um isolamento de malha laranja foram atacadas com spray de pimenta pelo vice-inspetor Anthony Bologna, da Polícia de Nova York. A violência e a crueldade do Estado foram expostos. E o movimento Occupy, por meio de sua firme recusa em responder à provocação da polícia, repercutiu em todo o país. Perder essa autoridade moral, esta capacidade de mostrar através de protesto não-violento a corrupção e a decadência do estado corporativo, mutilaria o movimento. Seria reduzir-nos à degradação moral dos nossos opressores. E é isso o que nossos opressores querem.

O movimento Black Bloc tem a rigidez e dogmatismo de todas as seitas absolutistas. Só os seus adeptos possuem a verdade. Só eles entendem. Só eles se arrogam o direito - porque eles são iluminados e não somos - de repudiar e ignorar pontos de vista concorrentes como infantis e irrelevantes. Eles ouvem apenas as suas próprias vozes, dão atenção apenas a seus próprios pensamentos. Acreditam apenas em seus próprios clichês. E isso os faz não só profundamente intolerantes, mas também estúpidos.

"Se você é hostil à organização e ao pensamento estratégico, a única coisa que lhe resta é a pureza do seu estilo de vida", disse Jensen. “O ’estilismo de vida’ suplantou a organização em grande parte do pensamento ambientalista predominante [mainstream]. Em vez de se opor ao estado corporativista, o ‘estilismo de vida’ sustenta que devemos usar menos papel higiênico e fazer compostagem dos detritos. Este tipo de atitude é inefetivo. Se você abre mão de organizar, ou é hostil a organizar, tudo o que lhe resta é essa hiperpureza, que acaba se tornando dogma rígido. Você acaba atacando pessoas por usarem telefone, por exemplo. Isso vale para os vegans e as questões de alimentação. Vale para as atitudes dos ativistas anti-carro em relação a quem usa carro. Acontece o mesmo com os anarquistas. Quando eu liguei para a polícia depois de ter recebido ameaças de morte, para os anarquistas Black Bloc eu virei 'amante dos porcos’."

Jensen prosseguiu:"Se você vive no território Ogoni e você vê que Ken Saro-Wiwa foi assassinado por causa dos seus atos de resistência não violenta, e você vê que a sua terra continua sendo destruída, então você pode pensar em partir para uma escalada. Eu não tenho dificuldades com isso. Mas a gente tem que ter passado pelo processo de tentar atuar junto ao sistema e ter ‘se ferrado’. É só aí que cabe ‘avançar o sinal’. Não podemos dar curto-circuito no processo. Há um processo de maturação que a gente precisa ser atravessar, enquanto indivíduos e enquanto movimento. A gente não pode simplesmente dizer: 'Ei, vou jogar um vaso num policial porque eu acho legal."

13 julho 2013

AS 1001 DIVERSIDADES - Capítulo 1

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PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL ES HOJE, em 14.06.2013



Nesta coluna não quero falar só com os de casa (LGBTs), mas também com H (héteros), intersexuais, assexuais e o que mais houver. Por isso, às vezes contarei histórias (como fiz em maio), às vezes serei um tanto explicativo - pois tudo o que espero é ver a gente se entender! E começo com uma questão: Maria viveu como João até os 18, aí assumiu sua diversidade, e depois casou com Renato: que tipo de diversidade temos aqui?

Diversidade! Tem quem pense que isso é invenção dos LGBT como desculpa para sem-vergonhice... Mas em 1845 um milhão de irlandeses morreram de fome por falta de diversidade (outro milhão só não morreu porque emigrou). Os dominadores mantinham o povo só com batata, e de uma variedade só. Deu uma praga... já viu. Isso não aconteceria no Peru, com 3 mil variedades de batata: dá doença em uma, outras resistem. Diversidade é invenção da Vida! Para a Vida, uniformidade é beira da morte, diversidade é saúde - inclusive no sexo.

As próprias diversidades sexuais são diversas: T se refere à identidade de gênero (que veremos adiante). L, G, B e H, à orientação do desejo. Dando nome aos bois: todo corpo humano tem desejo de ter contato intenso com outro corpo, incluindo os órgãos genitais. Não é só para reprodução: as faltas de contato físico e de gozo levam a neurose e a incontáveis problemas de saúde em todo o corpo. Gozo solitário não é errado - também tem suas funções - mas há efeitos de saúde que só o compartilhado alcança. Não se é humano sem interagir!

Homossexual é quem sente atração e prazer exclusivamente com corpos de genitália igual à sua, o que abrange as mulheres Lésbicas e os homens Gays. Heterossexual é quem sente atração e prazer exclusivamente por corpos com genitália diferente da sua. Nos dois casos o “exclusivamente” pode ter uma ou outra exceção, mas sempre vivida como uma escapada, uma extravagância que não cria raízes. Ficou em dúvida? O comprovante da orientação é o que predomina nos sonhos, ou nas fantasias e imagens que se insinuam na mente quando se está pensando em outra coisa. E aí tem gente que de fato sente desejo e prazer com os dois tipos de corpos, em medida igual ou com pouca diferença: é a Bissexualidade, que poucos assumem, mas é provavelmente mais comum que Heterossexualidade pura. (Vejam o Sr. Bolsonaro: não vive dizendo que “vai sentar a vara” em gays? Hétero puro nem pensa nisso!)

E Maria? Nasceu com genitália masculina mas, desde quando tem lembrança de si, só sentiu: “eu sou mulher”. Maria está enganada? Olhem seu corpo adormecido: a vida básica está ali; órgãos genitais que sugerem um homem estão ali. Mas a pessoa está ali? O corpo adormecido diz “Eu”? Quem diz Eu é a consciência desperta. E se essa consciência afirma que se sente mulher, quê outro Eu tem direito de afirmar que não é possível? Cada um só conhece o sentir que está dentro de si! Ao desejar Renato, Maria não se sente um homem homossexual e sim uma mulher heterossexual. Não é Gay: é Transexual.

Mas isto tudo é só base: em julho esquenta mais!
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