Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

22 abril 2012

RELIGIÕES E INTOLERÂNCIA: o texto antológico de Drauzio Varella

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Às vezes concordo com Drauzio Varella, às vezes não - mas com este texto ele conseguiu ir além dessa dicotomia: dizer que concordo é pouco. Nele, Drauzio conseguiu condensar praticamente tudo o que é relevante num assunto espinhoso, com excepcional clareza e equilíbrio, mostrando que sabe compreender as mais diversas posições, bem como o sentido antropológico das religiões, apesar de não sentir necessidade delas.

Vejo aqui um texto antológico, de arquivar para referência mas a ser também compartilhado o mais possível. Por essa razão vou imitar blogueiros como o Juca Kfouri e o Milton Ribeiro, e provavelmente muitos outros, e disponibilizar aqui no meu próprio blog. Espero que vocês também apreciem!  (Ralf.R) 



Intolerância religiosa
por DRAUZIO VARELLA
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 21.04.2012
SOU ATEU e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos.

A humanidade inteira segue uma religião ou crê em algum ser ou fenômeno transcendental que dê sentido à existência. Os que não sentem necessidade de teorias para explicar a que viemos e para onde iremos são tão poucos que parecem extraterrestres.
Dono de um cérebro com capacidade de processamento de dados incomparável na escala animal, ao que tudo indica só o homem faz conjecturas sobre o destino depois da morte. A possibilidade de que a última batida do coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e do inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos eternos, caso único entre os seres vivos.
Todos os povos que deixaram registros manifestaram a crença de que sobreviveriam à decomposição de seus corpos. Para atender esse desejo, o imaginário humano criou uma infinidade de deuses e paraísos celestiais. Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos a interferências mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no passado, para eles a vida eterna não faz sentido.
Não se trata de opção ideológica: o ateu não acredita simplesmente porque não consegue. O mesmo mecanismo intelectual que leva alguém a crer leva outro a desacreditar.
Os religiosos que têm dificuldade para entender como alguém pode discordar de sua cosmovisão devem pensar que eles também são ateus quando confrontados com crenças alheias.
Que sentido tem para um protestante a reverência que o hindu faz diante da estátua de uma vaca dourada? Ou a oração do muçulmano voltado para Meca? Ou o espírita que afirma ser a reencarnação de Alexandre, o Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse cristão não seria ateu?
Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. Não é o que pensa o evangélico na encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o judeu quando encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que teria dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há milhares, mas um único Deus?
Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus? Quantos acusados de hereges ou infiéis perderam a vida?
O ateu desperta a ira dos fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante obriga-os a questionar suas próprias convicções. Não é outra a razão que os fez apropriar-se indevidamente das melhores qualidades humanas e atribuir as demais às tentações do Diabo. Generosidade, solidariedade, compaixão e amor ao próximo constituem reserva de mercado dos tementes a Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores atrocidades.
Os pastores milagreiros da TV que tomam dinheiro dos pobres são tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O menino que explode com a bomba no supermercado desperta admiração entre seus pares porque obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam considerados mensageiros de Satanás.
Ajudamos um estranho caído na rua, damos gorjetas em restaurantes aos quais nunca voltaremos e fazemos doações para crianças desconhecidas, não para agradar a Deus, mas porque cooperação mútua e altruísmo recíproco fazem parte do repertório comportamental não apenas do homem, mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros, como demonstraram os etologistas.
O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso. Em vez de unir, ele divide a sociedade - quando não semeia o ódio que leva às perseguições e aos massacres.
Para o crente, os ateus são desprezíveis, desprovidos de princípios morais, materialistas, incapazes de um gesto de compaixão, preconceito que explica por que tantos fingem crer no que julgam absurdo.
Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam. Se a religião ajuda uma pessoa a enfrentar suas contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que não a torne intolerante, autoritária ou violenta.
Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam.
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16 abril 2012

MONSTROS? Eles apenas tomaram as falas das religiões realmente a sério!


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Eles acreditaram que "mal" e "bem" são "coisas" com existência objetiva em si, em lugar de serem qualidades potenciais de cada ato que qualquer pessoa pode executar a qualquer momento.

Acreditaram que certas pessoas são intrinsecamente ligadas ao mal, e outras não são. Também Calvino, cuja teologia embasa a ideologia dominante nos países de fala inglesa, afirmava que Deus cria certas pessoas para a salvação, e outras (a maioria) para a perdição eterna, sem que estas possam fazer nada para modificar o fato - havendo ainda sinais para denunciar se uma pessoa é de um tipo ou de outro.

Eles acharam que eliminar pessoas do mal é uma forma de fazer o bem. Afinal, a Bíblia não está cheia de exemplos de supostas ordens de Deus para "bons" eliminarem "maus" trucidando-os a espada ou de outras formas? (Coisas do Velho Testamento, dizem alguns - mas o livro de Atos, no Novo Testamento, relata que Deus teria feito cair mortos Ananias e Safira por mentirem que haviam entregue a totalidade de certo dinheiro quando haviam retido uma parte).

As pessoas de que estou falando buscavam eliminar o mal e realizavam atos que entendiam como rituais de purificação. Nada mais razoável, digno, correto, não?

E no entanto... estou falando das três pessoas que foram presas há poucos dias em Pernambuco por assassinatos e canibalismo - um homem e uma mulher de 51 anos, mais uma mulher de 25.

O homem escreveu e registrou em cartório um relato detalhado de sua vida e das razões porque realizava esses atos, levando outros a os realizarem voluntariamente com ele, há pelo menos quatro anos.


Antes de mais nada, havia vozes interiores que apontavam onde estava o mal e o que se devia fazer contra ele.

Ora, esse fenômeno está na origem remota da maior parte das religiões, além de continuar ativo no presente de muitas. Foi uma voz interior (identificada como "de Deus" ou "do Senhor") que mandou Abrão sair da sua terra e tratar de ocupar uma outra para deixá-la à sua descendência - sem levar em conta de que a terra apontada já era uma das povoadas há mais tempo na história humana. E também que lhe ordenou que matasse seu único filho a faca, suspendendo a ordem no último instante, satisfeita de ver a fidelidade de seu dominado. Contássemos a história sem mencionar a origem nem o nome dos personagens, psicólogos e psiquiatras apontariam uma perigosa psicose, espíritas não hesitariam em falar de uma entidade obsessora - e no entanto essa mesma história continua sendo relatada a crianças como exemplo positivo de fé.

Alguns, não tendo como negar que a Bíblia endossou muitos massacres e assassinatos como sendo "do bem", podem pretender colocar toda a diferença no elemento "canibalismo", dizendo não existir precedente bíblico para isso. Eu mesmo não me lembro de ter lido nada sobre isso em muitos anos de manuseio da Bíblia - nem no sentido da recomendação, nem no da interdição - mas nem considero necessário pesquisar isso agora, pois não estou falando apenas do judeo-cristianismo e sim de religiões em geral (ressalvando que é um equívoco classificar como "religiões" as escolas de filosofia aplicada do Extremo Oriente: taoismo, confucionismo e zen).

Mas mesmo se nos restringíssemos ao cristianismo, como ficaríamos depois de lembrar que de acordo com a doutrina católica oficial toda missa é um ato de canibalismo? Pois essa doutrina afirma que a hóstia e o vinho não são símbolos mas se convertem literalmente em carne e sangue de Jesus. Gerações e gerações têm sido "educadas" ouvindo histórias de alguém que cravou a faca ou meteu o calcanhar da bota na hóstia, e "até hoje está guardada em tal lugar para quem quiser ver" uma tábua com a marca de sangue resultante. (Tive uma infância protestante, mas ouvi essas histórias mencionadas muitas vezes por colegas de escola que as teriam ouvido de suas professoras de catecismo, nos anos 60).

Além disso, os canibais de Pernambuco têm recorrido a palavras da Bíblia para justificar que a carne sacrificada não devesse ser desperdiçada, e sim ingerida (como se lê nesta matéria, entre outras). É verdade que esses trechos não se referiam originalmente a carne humana - mas por que não poderia ser, se Deus teria pedido um sacrifício humano de Abraão, e se Jefté ofereceu outro em troca da vitória numa peleja, sem chocar ninguém com isso? (Juízes 11:30-40)


Mas o que me parece mais interessante no caso de Garanhuns é que os autores sequer visavam poder: entendiam sua ação como altruísta, visando a livrar o mundo de males; matavam e comiam com o objetivo da purificação! 

Purificação! Confesso que estremeço quando ouço alguém usar essa palavra para qualquer coisa além de ar e água, sobretudo para a vida humana - sentimento que também Gilberto Gil mostrou ter na instigante letra de Lar Hospitalar. Pois na vida as coisas frescas e úteis ("puras") e as coisas já usadas, desagradáveis e nocivas (merda, suor) estão sempre em convívio próximo; vão sendo separadas e descartadas mas ao mesmo tempo recriadas, sem parar. Toda limpeza é parcial e provisória, e certa medida de "sujo" é parte intrínseca da vida. Hoje sabemos que pessoas criadas em ambiente excessivamente limpos são mais suscetíveis a doenças, e geralmente alérgicas, ou seja: seu corpo não sabe como lidar com a "impureza", reage de modo inadequado e ineficiente; são biologicamente pouco competentes para o mundo real que gerou e mantém a vida há milhões de anos.


E aqui cabe lembrar que também o autor do Massacre de Realengo, o jovem de 24 anos que matou doze adolescentes a tiros dentro de uma escola em 2011, era obcecado por pureza, e impregnado de falas características do discurso religioso - como se pode ler em sua carta de despedida. Ao que parece, um indivíduo da mesma estirpe do personagem do conto Gladius Dei ("Espada de Deus"), escrito por Thomas Mann em 1902. E, como esses, poderíamos passar dias e dias coletando exemplos, tanto individuais quanto grupais.

A esta altura sei que muitos podem me acusar de estar atribuindo à própria religião o que não passaria de leituras equivocadas da religião, feitas por mentes doentias. 

E o que tenho a responder é o seguinte: sem dúvida as mentes são doentias - mas as leituras que fazem não são equivocadas: pelo contrário, só mentes doentias têm coragem de levar às últimas consequências o que os textos e inspirações religiosas de fato dizem.

Há correntes teológicas, ditas "liberais", que encaram os textos sagrados como totalmente simbólicos, úteis como base para reflexões porém sem nenhum compromisso de crença em seu sentido literal, e muito menos em sua integralidade como sistema coerente. Em outras palavras: posso usar uma história bíblica como ilustração ou inspiração do mesmo modo como posso usar uma da mitologia grega, ou da iorubá, celta, tupi, o que for - sem nenhuma obrigação de tomar Zeus senão como representação simbólica de certo conjunto de qualidades humanas e/ou naturais.

Mas a teologia liberal é minoritária na cristandade, e em geral francamente atacada como falsa e "desviada" pelos que se pretendem guardiães da "verdadeira" religião ('ortodoxos' em sentido amplo, fundamentalistas, "avivados" etc).

Digo então que a maioria das pessoas que se entregam a religiões só é salva de cometer atos bárbaros por sua razão - mas essa mesma razão é apontada pelo sistema a que servem como fraqueza, covardia, insuficiência de fé. Torna-se uma razão sitiada pela desrazão, dentro da própria pessoa. A razão ainda predomina, na maior parte dos casos, mas às custas de consideráveis conflitos interiores - pois justamente onde esse ser humano está sendo razoável e bom, com frequência ele se sente culpado ou é abertamente acusado pelos pares de ser "morno" ou "frio".

E aí muitas vezes cede ao assédio no sentido de se deixar "avivar" - e uma vez "avivado" passa a ser um agente tóxico para a saúde mental individual e coletiva. Passa a atuar no mesmo sentido que os "monstros" apontados acima, mesmo que em grau menos intenso e explícito - como uma pequena dose de arsênico a cada dia, que leva anos para matar a vítima por "causas desconhecidas", mas não deixou de atuar no mesmo sentido da dose grande que mata em poucas horas.

Assim são os religiosos que não matam pessoas diretamente, mas vêm destruindo o que havia de cordial, alegre e tolerante na cultura brasileira, semeando dissenso e mentiras para impedir a aprovação de leis que visam a reduzir a violência e outra formas de sofrimento, etc. etc.

Diante disso é preciso ter claro que o país vem sendo intoxicado pelas mesmas forças que, em estado puro, assumem formas como a do atirador de Realengo e a dos canibais de Pernambuco.

Ressalvo, para terminar, que acredito que os conceitos "bem" e "mal" não são vazios, nem sou propriamente ateu (deixando claro que vejo aí dois fatos paralelos, e não decorrentes um do outro). Acho notável que o escritor que foi identificado com o evangelista João tenha afirmado, mostrando que havia aprendido lições da filosofia grega, que no princípio de tudo estava "o lógos" - e que, portanto, o mundo é de natureza lógica. Percebe-se que via em seu mestre Jesus uma manifestação da razão libertadora contra as malhas opressoras da superstição religiosa. Infelizmente o ramo do cristianismo que se desenvolveu a partir dessa compreensão foi suplantando por outros ramos que se fizeram, ao contrário, apenas uma renovação das malhas de superstição. Os que apostavam no caminho do conhecimento (os gnósticos originais - não os que dizem sê-lo hoje) foram declarados heréticos e perseguidos. Restaram na Bíblia e no cristianismo apenas fragmentos atestando que houve princípios de uma compreensão mais luminosa disso tudo.

Não tenho a pretensão de explicar agora como poderia ser uma (digamos assim) religiosidade, ou capacidade de devoção, orientada pela razão (ou, significando a mesma coisa: pelo dom do lógos). Talvez Goethe estivesse na pista ao escrever "Quem tem ciência e tem arte, esse já tem religião. Quem essas duas não tem, que tenha religião" - o que eu me atrevi a tentar ampliar para "Quem tem ciência, tem arte e tem fraternidade, esse já tem religião. A quem não tem essas três, só lhe resta a alienação".

Sei é que, por amor das gerações que nos continuarão, temos que almejar com todas as forças que nunca mais venha a prevalecer a religiosidade supersticiosa que diz combater "as trevas" enquanto consiste ela mesma de escuridão!
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07 abril 2012

HOMOEROTISMO, 'EVANGÉLICOS' E A CONJUNTURA MUNDIAL ATUAL - um rápido olhar


Cientistas já constataram que quanto mais frequentes as relações homoeróticas em determinada espécie animal, mais pacífica é essa espécie em comparação com outras (como no contraste clássico entre os pacíficos bonobos e os internamente violentos chimpanzés).

Por que, então, o atual movimento evangélico faz ponto de honra da rejeição homossexualidade? Afinal, o cristianismo não almeja a paz?

Bom... aí depende de qual cristianismo, independente de qualquer palavra que Jesus tenha dito. Inclusive, na maior parte da história as vertentes pacifistas do cristianismo foram minoritárias, e frequentemente perseguidas.

No caso dos que atualmente chamam atenção no Brasil sob o nome “evangélicos”, é preciso antes de mais nada apontar que suas igrejas ou têm origem direta nos Estados Unidos, ou são aplicações nativas de programas teológicos estadunidenses.

E há algo que poucos sabem "do lado de fora": na maior parte dessas igrejas prega-se abertamente que é preciso que venha uma grande batalha física entre Israel e as demais nações. Para eles já está decidido que Israel vencerá, pois quando a batalha parecer perdida Jesus aparecerá nas nuvens, Israel admitirá que ele era o messias esperado, e aí Jesus garantirá a vitória, assumindo o poder do mundo como rei de um Israel cristianizado, e “regendo as nações com mão de ferro” (segundo palavras da Bíblia).

O objetivo maior dessas igrejas não é, portanto, a salvação da alma ou coisas afins, e sim apressar o estabelecimento do império terrestre de Jesus como rei de Israel da linhagem de Davi - este último de tanta importância simbólica por ter sido o primeiro e penúltimo rei a reunir os hebreus sob um poder único, estabelecido fisicamente sobre o Monte Sião, na então já multimilenar cidade de Jerusalém que ele acabara de conquistar pelas armas.

Nem é preciso dizer que essa crença agrada muitíssimo aos judeus sionistas, que com isso capitalizam o apoio da maioria evangélica estadunidense, e sabem muito bem que não precisam mencionar que depositam muito mais esperança nos poderes do átomo que no de um tal messias ressurreto.

E as duas crenças agradam muitíssimo às mais altas elites do capitalismo, que sabem que dependem da existência de grandes aparatos bélicos (armas e exércitos) para manter as multidões do mundo em estado de escravidão, ou no mínimo quietas quando não são necessárias.

De modo que esses missionários “evangélicos” que vêm se fazendo tão visíveis no Brasil, tanto na mídia convencional quanto na internet, são todos ou cúmplices ou inocentes úteis nas mãos dos poderes de sombra que hoje governam dos bastidores os EUA e um bocado mais do mundo

... poderes esses que dependem fundamentalmente de que o mundo esteja num estado de guerra permanente, visível como ou não tal.

E isso a ver com a homossexualidade?

Bom, não começamos por dizer que cientistas têm constatado que, no mundo animal, quanto mais frequente o erotismo homossexual mais pacífica a espécie?

Ou... sejamos mais precisos: quanto maior o papel do erotismo em geral na espécie - o qual, quanto mais livremente se manifesta, menos restringe sua face homossexual - mais inclinada a espécie é a encontrar soluções não violentas para seus conflitos. 

Ou quem sabe possamos dizer: essas já perceberam que o prazer concedido mutuamente relativiza as diferenças, e que afinal uma boa trepada é bem mais agradável que uma briga.

Daí que a esquerda gay italiana dos anos 70 talvez não delirasse tanto quando marchava ao som das palavras de ordem il coito / anale / abbatte il capitale (“o coito / anal / derruba o capital”) - embora eu pessoalmente nem ache que esse dom seja exclusivo dessa forma específica do erotismo!

Mas sobretudo dá para entender que qualquer coisa que apresente um bom potencial de pacificação seja execrada pelos ideólogos da guerra e seus servidores conscientes ou inconscientes -

... servidores da guerra que podem até ser judeo-cristãos (ou seja: idealizadores de um ungido da tribo de Judá, seja ele qual for), mas jamais seguidores do Jesus que transparece no que se considera sua mais longa fala preservada, o Sermão da Montanha, no qual se lê, entre outras coisas:

  • Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus;
  • Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados;
  • Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.


(Casualmente ou não, escrito na Páscoa de 2012)

'AQUILO QUE TEM QUE SER DITO': o poema 'escandaloso' de Günter Grass sobre o perigo nuclear israelense, em nova tradução

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Não fiquei muito satisfeito com nenhuma das traduções deste poema em português a que tive acesso e resolvi tentar a minha. Me desculpo de antemão: traduzir alemão é uma das coisas que merecem o rótulo "missão impossível", então também estou longe de prometer que esta versão vai satisfazer mais que as outras. É apenas a minha tentativa, mais uma, e espero que de algum modo possa pelo menos complementar as outras.

Detalhe interessante: na primeira leitura também achei que era um mero "artigo disfarçado de poema" pelo velho Grass (84 anos), como alguém sugeriu - mas ao trabalhar com o texto descobri a densidade de uma decisiva textura poética por baixo da superfície aparentemente tão prosaica!

Quanto ao tema, sinto que se torna a cada dia mais premente, e pretendo voltar a ele pelos ângulos mais diversos - e por isso mesmo acho bom advertir desde já: "antissemita" jamais, pois isso seria crime contra a humanidade; "antissionista", definitiva e decididamente - pois aqui se trata apenas de ser contra outro crime contra a humanidade. Pois pela humanidade só se pode ser a favor dela inteira: tudo o que for a favor de partes em detrimento de outras é contra.   (Ralf R. - Páscoa de 2012)



Aquilo que tem que ser dito
Günter Grass, 84 anos, Prêmio Nobel de Literatura, em 04/04/2012.
1º ensaio de tradução por Ralf Rickli, 07/05/2012



Por que tenho me calado, me calado por tempo demais
sobre o que é patente e já vem sendo ensaiado
em simulações ao fim das quais nós, como sobreviventes,
somos no máximo umas notas de rodapé?
É o alegado direito de ataque preventivo
que poderia extinguir aquele povo
subjugado por um fanfarrão
e empurrado ao júbilo organizado (o iraniano),
porque se suspeita da construção
de uma bomba atômica em seus domínios.
Por que, no entanto, eu me proíbo
de chamar pelo nome aquele outro país
no qual se dispõe há anos - ainda que em segredo -
de um potencial nuclear crescente
e sem controle, pois não se dá acesso
a nenhuma inspeção?
A generalizada omissão desse fato,
à qual se subordina o meu calar,
eu a sinto como incriminadora mentira
e coerção com promessa de punição:
assim que desobedecida,
o veredito “antissemitismo” está em toda parte.
Agora, porém, porque o meu país,
- que por seus crimes próprios,
que estão além de comparação,
é volta e meia chamando às falas ­-
deve entregar a Israel
(por razões puramente comerciais,
embora declarado
com lábios ligeiros
que se trata de reparação)
mais um submarino, cuja especialidade
é ser capaz de direcionar ogivas
de destruição total a um lugar
onde não foi comprovada a
existência
de uma bomba atômica sequer, e no entanto
com o fim de atemorizar se pretende
que existam provas conclusivas -
por isso agora eu vou dizer
o que precisa ser dito.
Por que, no entanto, até agora eu me calei?
Porque eu pensava que a minha origem,
marcada com mácula nunca extinguível,
proibia declarar tais fatos como verdadeiros
em relação ao país Israel, com o qual tenho laços
e quero continuar a ter.
Por que é que eu digo somente agora,
envelhecido e com o fim da minha tinta,
que o poder atômico de Israel põe em risco
a paz mundial, já frágil sem isso?
Porque precisa ser dito
o que amanhã pode ser muito tarde;
e também porque nós
- como alemães já o suficiente incriminados -
podemos vir a ser fornecedores para um crime previsível,
com o que nenhuma das usuais desculpas
teria o poder de redimir
nossa participação na culpa.
E admito: não mais me calo
porque estou farto da hipocrisia do Ocidente,
e tenho esperança que com isso
possam se libertar muitos desse calar-se
e conclamar o causador do reconhecível perigo
a abrir mão de violência, e igualmente
a que seja permitido pelos governos dos dois países
um controle permanente e desimpedido
do potencial atômico israelense
e das instalações atômicas iranianas
por uma instância internacional.
Somente assim será possível ajudar
a todos, israelenses e palestinos,
e mais: a todos os seres humanos
que nessa região ocupada pelo delírio
vivem apertados em inimizade - e afinal
a nós mesmos
também.
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