Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

15 outubro 2011

Pelos poderes de Adoniram Barbosa: o dia em que a lembrança de Sampa me fez chorar

.
Não, gente, desculpem, mas não tenho nenhuma saudade do cotidiano paulistano que vivenciei por 16 anos.


Não tenho saudade de ser imprensado feito sardinha cada vez que precisava me deslocar a mais de 2 Km de casa, não tenho saudades do sol fosco que (ao contrário da poeira) nem assusta os olhos, nem tenho saudade da "música" das avenidas que me roubou parte considerável da audição.


Muito menos tenho saudade daquela fração da população paulista que fantasia que seu modo de pensar, se vestir, comer, se divertir, existir, represente algum padrão de excelência frente ao resto do Brasil.


Mas ontem - eu confesso - saudade de São Paulo me fez chorar. Como nunca imaginei que faria.


Estava no caixa do supermercado (ia dizer "na fila", mas não, não tinha fila!) e o som ambiente começou a tocar "Trem das Onze". E a graciosa capixaba que me atendia começou a cantarolar junto discretamente, perdida em seus pensamentos.


E aí não deu. De repente era uma conexão com uma outra São Paulo - uma São Paulo que antes de mais nada não se opõe ao Brasil - nem o explora! - mas é a continuação do resto do Brasil - do qual também faz parte a capixabinha do caixa - pelas colinas e várzeas de Piratininga e Jurubatuba. Do Tietê, do Ipiranga, do Tamanduateí.


Ou, dizendo melhor: não mera "continuação": é a parte do Brasil-Brasil que repousa ali.


Repousa? Eu disse "repousa"?!  


Perdão: que se esfalfa, sofre, ama, chora, canta, faz tudo ali - menos repousar -


... e que nunca vai deixar de se estender também pelo meu coração adentro - esse meu (como disse aquele outro cantor de São Paulo nascido na Bahia) coração vagabundo...
[que] quer guardar o mundo
em
mim
.



.

12 outubro 2011

As palavras do filósofo Zizek aos manifestantes em Nova York, agora em tradução BRASILEIRA

.
Transcrição da fala do filósofo e professor esloveno Slavoj Zizek a manifestantes do movimento Occupy Wall Street no Parque Zuccotti, em Nova York, em 09.10.2011. Tradução brasileira de Ralf Rickli, 12.10.2011 (nós brasileiros perdemos muito com tradução portuguesa de Luís Leiria, publicada dia 11 no Esquerda.net e na Carta Maior). Note-se que se trata de uma contribuição informal, não uma aula sistemática. Também fica claro que Zizek não tem mais soluções ou rumos a apontar que nós - mas mesmo assim levanta muitos pontos que merecem leitura e reflexão. Bom proveito!
_________________________________________


Estão dizendo que todos nós somos uns perdedores, mas os verdadeiros perdedores estão ali em Wall Street. Eles foram socorridos por bilhões do nosso dinheiro. Nos chamam de socialistas - mas aqui sempre tem socialismo para os ricos. Dizem que nós não respeitamos a propriedade privada, mas no colapso financeiro de 2008 foi destruído mais de propriedade privada conquistada com sacrifício do que se todos nós aqui nos dedicássemos a destruir dia e noite por semanas. Eles dizem que somos sonhadores. Sonhadores mesmo são os que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente do jeito que estão. Nós não somos sonhadores: nós somos o despertar de um sonho que está virando pesadelo.

Não estamos destruindo nada. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se destruindo. Todo mundo conhece a clássica cena de desenho animado: o gato chega a um precipício mas continua andando, ignorando o fato de que não há nada embaixo servindo de chão. Ele só cai quando olha para baixo e percebe isso. E é isso o que nós estamos fazendo aqui: estamos dizendo pros caras lá em Wall Street: "Ei, olhem pra baixo!"

Em meados de abril de 2011, o governo chinês proibiu qualquer história que apresente realidades alternativas ou viagens no tempo, seja na tevê, cinema ou livro. Isso é um bom sinal quanto à China: as pessoas ainda sonham com alternativas, então você tem que proibir esse sonho. Aqui [nos Estados Unidos] não é preciso proibir, pois o sistema no poder oprimiu até a nossa capacidade de sonhar. Vejam os filmes que a gente vê o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se consegue imaginar o fim do capitalismo.

Então, o que nós estamos fazendo aqui? Me deixem contar uma velha piada dos tempos comunistas, que é ótima. O sujeito foi mandado da Alemanha Oriental pra trabalhar na Sibéria. Ele sabia que a sua correspondência seria lidas por censores, então ele disse aos amigos: "Vamos combinar um código. Quando vocês receberem uma carta minha, se for escrita em azul, o que eu estou dizendo é verdade. Se for escrita em vermelho, é falso". Um mês depois, seus amigos recebem a primeira carta. Toda em azul. A carta diz: "Tudo está maravilhoso aqui. As lojas estão cheias de comida boa, os cinemas apresentam bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos. A única coisa que não se acha é caneta vermelha".

É assim que nós vivemos. Temos todas as liberdades que queremos. O que nos falta é tinta vermelha: uma linguagem em que seja possível articular a nossa desliberdade. O modo de falar de liberdade que nos ensinam - guerra ao terror e coisas assim - falsifica a liberdade. E é isso que vocês estão fazendo aqui: vocês estão fornecendo tinta vermelha a todos nós.

Há um perigo. Não se apaixonem por si mesmos. Desfrutem estes momentos aqui, mas se lembrem: fazer carnaval é fácil. O que importa é o dia seguinte, quando vamos ter que voltar às nossas vidas normais. Terá havido alguma mudança, então? Eu não quero que vocês se lembrem destes dias como, vocês sabem: "Ah, nós éramos jovens, aquillo foi lindo". Lembrem que a nossa mensagem básica é: "Nós temos o direito de pensar em alternativas". Nós não vivemos no melhor dos mundos possíveis quando as regras são quebradas; há um longo caminho pela frente. Existem questões realmente difíceis que nos confrontam. Nós sabemos o que não queremos. Mas o que é que nós queremos? Que forma de organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes nós queremos?

Lembrem-se: o problema não é a corrupção ou a ganância. O problema é o sistema. Esse sistema força você a ser corrupto. Cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo. Do mesmo modo que você tem café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete de creme sem gordura, eles vão tentar fazer disto um protesto moral inofensivo. Um processo descafeinado. Mas a razão de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo em que basta reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para entidades sociais, ou comprar um cappuccino da Starbucks do qual 1% vai para crianças morrendo de fome no terceiro mundo, para nos sentirmos bem. Depois da terceirização do trabalho e da tortura, depois que agências de casamento vem terceirizando nossa vida amorosa, podemos ver que temos permitido desde há muito que também a nossa participação política seja terceirizada - e nós a queremos de volta.

Se comunismo significa aquele sistema que desmoronou em 1990, nós não somos comunistas. Lembrem-se que aqueles comunistas são hoje os capitalistas mais eficientes e impiedosos. Na China de hoje temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico que o seu capitalismo americano, mas não requer democracia. Quer dizer: quando você criticar o capitalismo, não se deixe chantagear com a acusação de que você é contra a democracia. O casamento entre democracia e capitalismo acabou. Está sendo possível mudar.

O que percebemos hoje como possível? Deem uma olhada na mídia. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade, tudo parece ser possível. Dá pra viajar para a lua, dá pra se tornar imortal pela biogenética, dá pra fazer sexo com animais ou o que for - mas olhem o campo da sociedade e da economia: aí quase tudo é considerado impossível.Você quer aumentar os impostos dos ricos um pouquinho... eles dizem que é impossível: iríamos perder competitividade. Você quer mais dinheiro para o sistema de saúde, eles dizem: "impossível, isso significa estado totalitário". Tem algo de errado num mundo que promete tornar você imortal, mas não pode gastar um pouquinho mais com o sistema de saúde.

Quem sabe a gente deva definir as nossas prioridades justo por aqui: não queremos um padrão de vida mais alto; queremos um padrão de vida melhor. E o único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens tidos em comum (the commons). Os bens comuns da natureza. Os bens comuns que são privatizados pela propriedade intelectual. O bens comuns da biogenética. É por isso, e só por isso, que deveríamos lutar. O comunismo teve um fracasso absoluto, mas os problemas dos bens comuns continuam aqui.

Estão dizendo que nós aqui não somos "americanos". Mas é preciso recordar uma coisa aos conservadores fundamentalistas que alegam ser "americanos de verdade": o que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de pessoam que creem, ligadas pelo amor de umas pelas outras, e que para realizá-lo dependem somente de sua própria liberdade e responsabilidade. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui agora. E lá em Wall Street o que há são pagãos adorando ídolos blasfemos.

Então, tudo o que precisamos é de paciência [Nota do tradutor: parece mais provável que Zizek tenha dito ou pretendesse dizer "persistência"]. A única coisa de que eu tenho medo é de daqui a uns dias a gente simplesmente vá para casa e depois se encontre uma vez por ano para beber cerveja relembrando nostalgicamente: "que momento gostoso nós tivemos ali". Prometam a si mesmos que este não será o caso. Sabemos que muitas vezes as pessoas têm desejo por alguma coisa mas não a querem de fato. Não tenham medo de querer de verdade aquilo que vocês desejam. Muito obrigado.

.