Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

10 dezembro 2011

Belo Monte desastre ambiental? CONTA OUTRA!

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Não sou um especialista em ecologia, mas também não totalmente sem noção: passei dos meus 22 aos 25 anos na Inglaterra estudando Agricultura Biodinâmica e sua aplicação no desenvolvimento rural de áreas tropicais. Nos anos 80 dei perto de 50 palestras e cursos sobre temas agronômicos e/ou ecológicos em 28 cidades de oito estados brasileiros, mais Venezuela. É óbvio que isso não me capacita a dar palavra final sobre nenhum assunto, mas acredito que não deixe de ajudar na hora de avaliar a consistência das falas de outros sobre o campo ambiental, não é?

Se na década seguinte optei por trabalhar com jovens de periferias metropolitanas foi por perceber que as questões ecológicas mais decisivas eram as intraespecíficas da espécie humana, vulgarmente conhecidas por "sociais", "políticas" e "econômicas" - e neste ponto me sinto tentado a enveredar para diversas discussões filosóficas... mas no momento o urgente é compartilhar informações objetivas que ajudem a desfazer a cortina de desinformação andou sendo lançada - o que inclusive dará mais concretude a qualquer reflexão filosófica posterior. Baste lembrar, por enquanto, que não existe nada sem impacto, a mera existência já representa impacto.

É óbvio que nós humanos precisamos aprender a administrar os nossos impactos, tanto porque pelo tamanho da população humana eles se tornaram de fato relevantes para o planeta, quanto por termos capacidade consciente para tal, e a contraparte da capacidade consciente é a responsabilidade. Mas impacto zero só teremos se deixarmos de existir - e por que teríamos menos direito a existir que qualquer outra espécie?

Só que há uma forma de ambientalismo que é uma espécie de metamorfose pretensamente científica da religiosidade judaico-cristã da culpa, sempre à espera de catástrofes castigadoras. Com isso, não poucas vezes vi antigos colegas preverem pequenos a médios apocalipses que, como os dos religiosos assumidos, acabaram não vindo.

Só por exemplo: quando se anunciou a construção do túnel sob o Parque Ibirapuera, em São Paulo, especialistas clamaram que era garantido que as árvores do parque iriam morrer devido ao rebaixamento do lençol freático. Talvez o túnel tenha sido um erro por outras razões, mas esse efeito "garantido" não aconteceu.

Nos anos 80 construiu-se a uns 200 Km de Manaus o que é provavelmente a hidrelétrica de mais baixa eficiência do mundo: Balbina. Sua área inundada é 4 vezes e meia a que será por Belo Monte, para produzir  45 vezes menos energia do que esta. Um desastre técnico total. E ambientalmente? Meus colegas diziam que a decomposição orgânica produziria um lago pútrido e fétido, sem vida dentro nem ao redor - porem amigos amazonenses me dizem que, malgrado a baixa eficiência energética, tornou-se um lugar lindo e agradável, cheio de peixes e inclusive (dizem eles) bastante apreciado pelos índios.

Qual o mistério? Os ecorreligiosos adoram mencionar um livro que não leram, "Gaia", de James Lovelock. Ao contrário do que pensam, esse livro diz justamente que é muito maior do que pensávamos a capacidade do organismo-Terra de absorver modificações e criar novos equilíbrios dinâmicos - tanto que, na época em que saiu, nós que lemos o livro ficamos revoltados e acusamos o autor de ser financiado pela indústria - no que não deixava de existir alguma verdade, mas não que chegasse a anular as evidências propriamente científicas que apresentava.

Passo a alguns dados sobre Belo Monte e outras hidrelétricas que eu ainda não havia visto, precisei pesquisar. Pra começar, passei décadas acreditando que Itaipu era o maior lago artificial do mundo... quando era apenas a hidrelétrica de maior capacidade de produção, no que só foi superada há pouco por Três Gargantas, na China. Em área alagada Itaipu está em sétimo lugar só no Brasil, e nem faz sentido fazer a conta em nível mundial - pois Sobradinho, que dá 3,12 lagos de Itaipu e os sites oficiais da Bahia insistem em dizer que é o maior lago artificial do mundo, está na verdade em 11º ou 12º lugar quando se olham os números.

Que dizer então de Belo Monte? - que em área alagada terá apenas 38% de Itaipu e 12% de Sobradinho - isso para conseguir o 3º maior potencial de produção hidrelétrica do mundo (80% de Itaipu e 1070% - sim, mil e setenta por cento, ou 10,7 vezes, o potencial máximo de Sobradinho).

O lago artificial de maior área é atualmente o Volta, em Ghana: com 8482 Km² = 2 Sobradinhos = 3,6 Balbinas = 6,3 Itaipus = 16,4 Belo Montes.

No Estado de São Paulo, só as 8 represas do Rio Paranapanema inundam 3,5 vezes a área de Belo Monte,  para produzir, em conjunto, 20% da energia. Note-se que SP tem ainda dezenas de outras usinas, e praticamente toda a área inundada também era originalmente florestal.

E, ainda a propósito de áreas inundadas, veja os Km² usados por cada usina para cada MW que é capaz de produzir:
  • Balbina ................. 9,440 Km² 
  • Sobradinho ........... 4,000 Km²
  • Rio Paranapanema .. 0,800 Km²
  • Itaipu ................... 0,096 Km²
  • Três Gargantas ...... 0,059 Km²
  • Belo Monte ............ 0,046 Km²

Além desses números que falam por si, é preciso saber que Belo Monte inundará 0,26% da área total dos 5 municípios que atingirá, e deve deslocar cerca de 20 mil pessoas. Três Gargantas deslocou 60 vezes isso (1 milhão e 200 mil pessoas), submergindo 160 cidades e vilas, além de sítios arqueológicos.

Barbárie? Os chineses sabem é que jamais manterão sua independência, no mundo bárbaro em que estamos, sem energia abundante já. Quê privilégio temos, no Brasil, de podermos obter quase tanto com tão menor sacrifício social e ambiental!

E quem diz que toda e qualquer mudança no modo de vida de uma população local é sempre negativa? Eu conheci, em criança, o estado de miséria, ignorância e violência endêmica em que viviam as populações do Vale do Iguaçu na faixa que foi afetada pelas cinco grandes hidrelétricas construídas nesse rio. Não fiz nenhum estudo a respeito, mas juro que me custa crer que essa população possa estar pior que o que eu conheci! E, mais uma vez, a área e a população afetadas por Belo Monte serão muito menores.

Finalmente: é óbvio que se podem e devem desenvolver energias alternativas, que se deve pedir ao governo que não descuide disso, mas para isso não é preciso deixar de aproveitar Belo Monte, que está aí de imediato, já estudada e projetada, e representa uma barbada tamanha que é preciso ser otário para não aproveitar! Inclusive porque quem diz que o impacto das fontes alternativas é sempre menor?

Encontrei na internet um site mostrando em números que a área inundada de Itaipu poderia produzir o dobro da energia se fosse ocupada por captadores solares. Mas, gente... Itaipu não é uma área morta! Essa e outras represas são lagos vivos, que propiciam ou podem propiciar navegação, pesca, irrigação, administração das cheias e secas do rio, abastecimento de água, lazer... Quando os lagos de hidrelétricas não propiciam isso, não é porque não possam, e sim porque não pressionamos pelo seu melhor uso possível. Em vez de enfrentar as pulgas preferimos sacrificar o cachorro.

Imaginem, em contraste, o que seria uma área como a do lago de Itaipu usada em captação de energia solar: seria sequestrada tanto da ordem natural quanto do uso humano de modo muito mais dramático, seria uma monstruosidade tecnológica sinistra, muito mais que o lago que temos lá!

Para terminar por hoje: alguém sabe me explicar por que é que o ambiente amazônico seria incapaz de tolerar esse acréscimo de uns 300 Km² de área inundada (pois cerca de 220 dos 516 já são leito inundado hoje) se a própria variação da área inundada da Amazônia conforme as épocas do ano é alguns milhares de vezes maior do que isso?

PS1 (acrescentado em 11/12): A Amazônia legal brasileira tem aproximadamente 5.500.000 Km². O conjunto amazônico, distrubuído entre Brasil, Peru e mais 7 países, é estimado em 7.000.000 Km². Os ~300 Km adicionais que serão inundados representam portanto 0,0043% dessa área. Isso será ocupado de uma vez por todas. Já o desmatamento para formação de pastagem e finalidades afins tem sido da ordem de 7.000 Km² ao ano, ou seja, 23 vezes a área que será alagada, e isso repetidamente. Se alguém está realmente interessado em defender a Amazônia, onde está o verdadeiro problema a enfrentar?

PS2: Há, evidentemente muitas outras questões envolvidas - p.ex., sobre os índios. Eu venho compartilhando material alheio sobre muitas delas, voltarei a compartilhar e voltarei a escrever. Obviamente não cabe tudo numa postagem só!)

Arquipélago das Anavilhanas, no Rio Negro, AM
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19 novembro 2011

QUAL ABOMINAÇÃO É PIOR: SER GAY OU COMER MOLUSCOS? A melhor resposta que já vi ...


O material a seguir percorre a internet há vários anos. Não sabemos quem foi o autor do original em inglês, nem da tradução (na qual fiz leves intervenções de estilo), mas não importa: é um material extremamente inteligente, além de bem humorado, e merece ser reproduzido e divulgado constantemente, até que não reste no mundo um único preconceituoso que busque se escudar na letra de escrituras sagradas. (Ralf.R) Em tempo: o título como aparece aqui e o texto base foram extraídos desta vez do blog Escreva, Lola, Escrevahttp://escrevalolaescreva.blogspot.com/2011/10/qual-maior-abominacao-homossexualidade.html 


QUAL ABOMINAÇÃO É PIOR: SER GAY OU COMER MOLUSCOS?
A melhor resposta que já vi para quem procura base para interdições (à homossexualidade e outras) na letra da Bíblia

Um ouvinte da apresentadora estadunidense Laura Schlessinger, cristã fundamentalista, lhe mandou a seguinte carta pedindo esclarecimentos:

Cara Dra. Laura,

Obrigado por estar fazendo tanto para educar as pessoas a respeito da Lei de Deus. Eu tenho aprendido muito com o seu programa, e tento compartilhar o conhecimento com tantas pessoas quantas posso. Quando alguém tenta defender o homossexualismo, por exemplo, eu simplesmente o lembro que Levítico 18:22 claramente afirma que isso é uma abominação. Fim do debate.

Mas eu preciso de sua ajuda, entretanto, no que diz respeito a algumas leis específicas e como segui-las:

a. Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levítico 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?

b. Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?

c. Eu sei que não é permitido ter nenhum contato com uma mulher enquanto ela está em seu período de impureza menstrual (Levítico 15:19-24). O problema é: como eu digo isso a ela? Eu tenho tentado, mas a maioria das mulheres toma isso como ofensa.

d. Levítico 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso? Por que eu não posso possuir canadenses?

e. Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 afirma claramente que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo mesmo?

f. Um amigo meu acha que mesmo que comer moluscos seja uma abominação (Levítico 11:10), é uma abominação menor que a homossexualidade. Eu não concordo. Você pode esclarecer esse ponto?

g. Levítico 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?

h. A maioria dos meus amigos homens apara a barba, inclusive o cabelo das têmporas, mesmo que isso seja expressamente proibido em Levítico 19:27. Como eles devem morrer?

i. Eu sei que tocar a pele de um porco morto me faz impuro (Levítico 11:6-8), mas eu posso jogar futebol americano se usar luvas? (A senhora sabe, as bolas de futebol americano são feitas com pele de porco).

j. Meu tio tem uma fazenda. Ele viola Levítico 19:19 plantando dois tipos diferentes de plantas no mesmo campo. Sua esposa também viola Levítico 19:19 porque usa roupas feitas de dois tipos diferentes de tecido (algodão e poliéster). Ele também costuma xingar e blasfemar muito. É realmente necessário que eu chame toda a cidade para apedrejá-los (Levítico 24:10-16)? Nós não poderíamos simplesmente queimá-los em uma cerimônia privada, como deve ser feito com as pessoas que mantêm relações sexuais com seus sogros (Levítico 20:14)?

Eu sei que a senhora estudou essas coisas a fundo, então estou confiante que possa ajudar. Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável. Seu discípulo e fã ardoroso, ***


15 outubro 2011

Pelos poderes de Adoniram Barbosa: o dia em que a lembrança de Sampa me fez chorar

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Não, gente, desculpem, mas não tenho nenhuma saudade do cotidiano paulistano que vivenciei por 16 anos.


Não tenho saudade de ser imprensado feito sardinha cada vez que precisava me deslocar a mais de 2 Km de casa, não tenho saudades do sol fosco que (ao contrário da poeira) nem assusta os olhos, nem tenho saudade da "música" das avenidas que me roubou parte considerável da audição.


Muito menos tenho saudade daquela fração da população paulista que fantasia que seu modo de pensar, se vestir, comer, se divertir, existir, represente algum padrão de excelência frente ao resto do Brasil.


Mas ontem - eu confesso - saudade de São Paulo me fez chorar. Como nunca imaginei que faria.


Estava no caixa do supermercado (ia dizer "na fila", mas não, não tinha fila!) e o som ambiente começou a tocar "Trem das Onze". E a graciosa capixaba que me atendia começou a cantarolar junto discretamente, perdida em seus pensamentos.


E aí não deu. De repente era uma conexão com uma outra São Paulo - uma São Paulo que antes de mais nada não se opõe ao Brasil - nem o explora! - mas é a continuação do resto do Brasil - do qual também faz parte a capixabinha do caixa - pelas colinas e várzeas de Piratininga e Jurubatuba. Do Tietê, do Ipiranga, do Tamanduateí.


Ou, dizendo melhor: não mera "continuação": é a parte do Brasil-Brasil que repousa ali.


Repousa? Eu disse "repousa"?!  


Perdão: que se esfalfa, sofre, ama, chora, canta, faz tudo ali - menos repousar -


... e que nunca vai deixar de se estender também pelo meu coração adentro - esse meu (como disse aquele outro cantor de São Paulo nascido na Bahia) coração vagabundo...
[que] quer guardar o mundo
em
mim
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12 outubro 2011

As palavras do filósofo Zizek aos manifestantes em Nova York, agora em tradução BRASILEIRA

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Transcrição da fala do filósofo e professor esloveno Slavoj Zizek a manifestantes do movimento Occupy Wall Street no Parque Zuccotti, em Nova York, em 09.10.2011. Tradução brasileira de Ralf Rickli, 12.10.2011 (nós brasileiros perdemos muito com tradução portuguesa de Luís Leiria, publicada dia 11 no Esquerda.net e na Carta Maior). Note-se que se trata de uma contribuição informal, não uma aula sistemática. Também fica claro que Zizek não tem mais soluções ou rumos a apontar que nós - mas mesmo assim levanta muitos pontos que merecem leitura e reflexão. Bom proveito!
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Estão dizendo que todos nós somos uns perdedores, mas os verdadeiros perdedores estão ali em Wall Street. Eles foram socorridos por bilhões do nosso dinheiro. Nos chamam de socialistas - mas aqui sempre tem socialismo para os ricos. Dizem que nós não respeitamos a propriedade privada, mas no colapso financeiro de 2008 foi destruído mais de propriedade privada conquistada com sacrifício do que se todos nós aqui nos dedicássemos a destruir dia e noite por semanas. Eles dizem que somos sonhadores. Sonhadores mesmo são os que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente do jeito que estão. Nós não somos sonhadores: nós somos o despertar de um sonho que está virando pesadelo.

Não estamos destruindo nada. Estamos apenas testemunhando como o sistema está se destruindo. Todo mundo conhece a clássica cena de desenho animado: o gato chega a um precipício mas continua andando, ignorando o fato de que não há nada embaixo servindo de chão. Ele só cai quando olha para baixo e percebe isso. E é isso o que nós estamos fazendo aqui: estamos dizendo pros caras lá em Wall Street: "Ei, olhem pra baixo!"

Em meados de abril de 2011, o governo chinês proibiu qualquer história que apresente realidades alternativas ou viagens no tempo, seja na tevê, cinema ou livro. Isso é um bom sinal quanto à China: as pessoas ainda sonham com alternativas, então você tem que proibir esse sonho. Aqui [nos Estados Unidos] não é preciso proibir, pois o sistema no poder oprimiu até a nossa capacidade de sonhar. Vejam os filmes que a gente vê o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se consegue imaginar o fim do capitalismo.

Então, o que nós estamos fazendo aqui? Me deixem contar uma velha piada dos tempos comunistas, que é ótima. O sujeito foi mandado da Alemanha Oriental pra trabalhar na Sibéria. Ele sabia que a sua correspondência seria lidas por censores, então ele disse aos amigos: "Vamos combinar um código. Quando vocês receberem uma carta minha, se for escrita em azul, o que eu estou dizendo é verdade. Se for escrita em vermelho, é falso". Um mês depois, seus amigos recebem a primeira carta. Toda em azul. A carta diz: "Tudo está maravilhoso aqui. As lojas estão cheias de comida boa, os cinemas apresentam bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos. A única coisa que não se acha é caneta vermelha".

É assim que nós vivemos. Temos todas as liberdades que queremos. O que nos falta é tinta vermelha: uma linguagem em que seja possível articular a nossa desliberdade. O modo de falar de liberdade que nos ensinam - guerra ao terror e coisas assim - falsifica a liberdade. E é isso que vocês estão fazendo aqui: vocês estão fornecendo tinta vermelha a todos nós.

Há um perigo. Não se apaixonem por si mesmos. Desfrutem estes momentos aqui, mas se lembrem: fazer carnaval é fácil. O que importa é o dia seguinte, quando vamos ter que voltar às nossas vidas normais. Terá havido alguma mudança, então? Eu não quero que vocês se lembrem destes dias como, vocês sabem: "Ah, nós éramos jovens, aquillo foi lindo". Lembrem que a nossa mensagem básica é: "Nós temos o direito de pensar em alternativas". Nós não vivemos no melhor dos mundos possíveis quando as regras são quebradas; há um longo caminho pela frente. Existem questões realmente difíceis que nos confrontam. Nós sabemos o que não queremos. Mas o que é que nós queremos? Que forma de organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes nós queremos?

Lembrem-se: o problema não é a corrupção ou a ganância. O problema é o sistema. Esse sistema força você a ser corrupto. Cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que já estão trabalhando para diluir este processo. Do mesmo modo que você tem café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete de creme sem gordura, eles vão tentar fazer disto um protesto moral inofensivo. Um processo descafeinado. Mas a razão de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo em que basta reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para entidades sociais, ou comprar um cappuccino da Starbucks do qual 1% vai para crianças morrendo de fome no terceiro mundo, para nos sentirmos bem. Depois da terceirização do trabalho e da tortura, depois que agências de casamento vem terceirizando nossa vida amorosa, podemos ver que temos permitido desde há muito que também a nossa participação política seja terceirizada - e nós a queremos de volta.

Se comunismo significa aquele sistema que desmoronou em 1990, nós não somos comunistas. Lembrem-se que aqueles comunistas são hoje os capitalistas mais eficientes e impiedosos. Na China de hoje temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico que o seu capitalismo americano, mas não requer democracia. Quer dizer: quando você criticar o capitalismo, não se deixe chantagear com a acusação de que você é contra a democracia. O casamento entre democracia e capitalismo acabou. Está sendo possível mudar.

O que percebemos hoje como possível? Deem uma olhada na mídia. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade, tudo parece ser possível. Dá pra viajar para a lua, dá pra se tornar imortal pela biogenética, dá pra fazer sexo com animais ou o que for - mas olhem o campo da sociedade e da economia: aí quase tudo é considerado impossível.Você quer aumentar os impostos dos ricos um pouquinho... eles dizem que é impossível: iríamos perder competitividade. Você quer mais dinheiro para o sistema de saúde, eles dizem: "impossível, isso significa estado totalitário". Tem algo de errado num mundo que promete tornar você imortal, mas não pode gastar um pouquinho mais com o sistema de saúde.

Quem sabe a gente deva definir as nossas prioridades justo por aqui: não queremos um padrão de vida mais alto; queremos um padrão de vida melhor. E o único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens tidos em comum (the commons). Os bens comuns da natureza. Os bens comuns que são privatizados pela propriedade intelectual. O bens comuns da biogenética. É por isso, e só por isso, que deveríamos lutar. O comunismo teve um fracasso absoluto, mas os problemas dos bens comuns continuam aqui.

Estão dizendo que nós aqui não somos "americanos". Mas é preciso recordar uma coisa aos conservadores fundamentalistas que alegam ser "americanos de verdade": o que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de pessoam que creem, ligadas pelo amor de umas pelas outras, e que para realizá-lo dependem somente de sua própria liberdade e responsabilidade. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui agora. E lá em Wall Street o que há são pagãos adorando ídolos blasfemos.

Então, tudo o que precisamos é de paciência [Nota do tradutor: parece mais provável que Zizek tenha dito ou pretendesse dizer "persistência"]. A única coisa de que eu tenho medo é de daqui a uns dias a gente simplesmente vá para casa e depois se encontre uma vez por ano para beber cerveja relembrando nostalgicamente: "que momento gostoso nós tivemos ali". Prometam a si mesmos que este não será o caso. Sabemos que muitas vezes as pessoas têm desejo por alguma coisa mas não a querem de fato. Não tenham medo de querer de verdade aquilo que vocês desejam. Muito obrigado.

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16 setembro 2011

Tantas vidas numa só... Acho que está começando a QUINTA!

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Desde as 12:45 de anteontem (14.09.2011) este que vos escreve se encontra na cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo.


Bom, isso não chega a ser novidade: desde 1985, esta é a quinta vez que ponho os pés neste chão. Só que desta vez - salvo imprevistos incontroláveis que aposto que não virão - é pra ficar. Por no mínimo 7 anos (há razões não exatamente cabalísticas para isso), talvez por mais. Talvez pelo resto da vida - quem pode dizer?

Em 1957 pousei neste planeta em Curitiba porque meus pais - ambos do interior do Paraná - haviam se conhecido por lá, mas com por volta de um mês já estava morando em Guarapuava - na época, apesar de seus 140 anos, não mais que um pequeno núcleo imerso em poeira ou em lama (dependendo de chover ou bater sol), situada em campos nativos belíssimos porém a 1.100 metros de altitude - quer dizer: varridos quase o tempo todo por um vento gelado cortante - e com uma cultura local não menos cortante, quando não contundente ou perfurante: faca, porrada ou bala, o mais típico far-west. Viver nesse lugar numa casa onde havia livros, Beethoven e Bach - apesar de não pouca porrada também dos pais - foi uma espécie de exercício precoce em dialética.


Vivi em Guarapuava até uns dois meses antes de completar 15 anos, e aí me instalei em Curitiba, em casa de tia & vó, pra tentar achar meus caminhos no mundo civilizado... E, não, não foi uma continuação, uma metamorfose ou desenvolvimento do anterior: foi outra vida. Verdade que houve um fio condutor: uma das duas únicas coisas bonitas que eu havia conhecido até então: música (a outra era a natureza). Na dúvida entre Filosofia, Psicologia e Jornalismo, fiquei mesmo só com o estudo de música, que dois meses antes dos 18 virou ensino de música: meu primeiro emprego, em carteira, professor de música em Santa Catarina (!) (eu ia uma vez por semana, a divisa dos estados é a menos de 100 Km de Curitiba). Eu pensava sinceramente que lidaria com isso pelo resto dos meus dias, frequentava congressos e cursos de Buenos Aires a São João del Rei - mas entre os 21 e 22 essa segunda vida teve um fim. Desmoronou por si mesma, pela incapacidade de equacionar sozinho uma porção de tensões internas, e falta de quem ajudasse a equacionar.


Aí cruzei o pessoal da antroposofia, que me pareceu detentor de possibilidades de síntese entre as diferentes coisas que minha(s) vida(s) já me havia(m) dado a conhecer: natureza & vida no interior, arte & cultura em geral, e um campo entre o filosófico & o místico fazendo a costura entre os dois anteriores. Fui pra Inglaterra estudar agricultura biodinâmica e desenvolvimento rural em perspectiva antroposófica - dois anos no Emerson College - não porque tivesse talentos de agricultor, mas porque entendia que nenhuma cultura seria sustentável sem uma relação saudável com a natureza nesse alicerce da civilização que é a produção dos alimentos. Mas meu objetivo não era ficar no alicerce: a ideia era criar possibilidades de crescimento cultural, de desenvolvimento humano pleno sem precisar abandonar o interior. Ao voltar da Inglaterra passei mais algum tempo em Guarapuava e em Curitiba, temperado com alguns meses de São Paulo, e me instalei em Botucatu, cidade do interior de São Paulo em situação geográfica análoga à de Guarapuava no Paraná - na verdade a 12 Km da cidade, no conjunto de iniciativas de inspiração antroposófica que começava a vicejar em torno da pioneira fazenda Demétria. Também pensava que esta terceira vida seria definitiva, e que a ida para um ano de Alemanha entre os 33 e os 34 anos seria apenas um detalhe da mesma.


O que eu não esperava é que a tentativa de estudar a realidade histórica e social brasileira com o instrumental disponibilizado pela antroposofia terminasse me revelando inconsistências estruturais profundas no corpo dessa proposta de cultura nascida no espaço cultural alemão, que tem uma pretensão de universalidade que é ao mesmo tempo o seu charme e sua fraqueza, pois se mostra insustentável frente a um entendimento efetivamente antropológico das coisas. Enfim, concretamente, aos 35 me vi em São Paulo - a antítese total do interior em que eu havia imaginado trabalhar - trabalhando com cultura no oceano dos jovens da periferia - que é, afinal, onde o povo original do interior já havia ido parar. E essa veio a ser uma quarta vida; a passagem pelas periferias urbanas da Região Metropolitana da Baixada Santista (2002-2007) não foi nenhuma interrupção, mas apenas uma variação dentro do mesmo processo. E foi nessa situação que realizei o que me parece ser um fruto significativo - se há outros não sei, mas esse eu ouso apostar que é: o desenvolvimento das bases e diretrizes de uma Filosofia e Pedagogia do Convívio (sobre as quais já há pelo menos 600 páginas disponíveis em www.tropis.org/biblioteca - embora ainda falte muito para o quadro estar suficientemente completo e organizado).

O "detalhe avassalador" dessa quarta vida foi: sendo atividade prospectiva, experimental, pioneira, nunca encontrei quem estivesse disposto a bancá-la a não ser por períodos curtos. Na maior parte do tempo eu mesmo tive que financiar o trabalho mais importante da minha vida fazendo coisas que julgo de importância menor, como aulas de idiomas e traduções. Uma ou outra vez, é verdade, consegui aprovação de projetos relativos à própria Pedagogia do Convívio, e aí tive que administrá-los - mas administrar não é o mesmo que estar na  execução direta da pesquisa-ação. Desse modo, se os 18 anos de 1992 a 2010 foram os interiormente mais enriquecedores da minha vida, exteriormente seu resultado foi o mais completo empobrecimento: aulas, traduções e projetos não deram conta de bancar o custo desses tempos experimentais: também as propriedades que eu havia herdado (não muitas, mas houve) foram vendidas e comidas até o último centavo - em uma mesa onde raramente estavam sentados menos de cinco pessoas, muitas vezes dez ou mais.


Bonita que tenha sido, também essa quarta vida chegou a um limite por si - e o trabalho de parto de uma quinta parece ter começado em outubro de 2010, quando enfiei minhas coisas em duas mochilas - entre elas dois projetos de mestrado - e tentei me mudar para Salvador. Depois de 40 dias, inesquecíveis mas que não trouxeram o ingresso no mestrado desejado, voltei a Curitiba, onde nasci, para encontrar minha mãe, aos 88, numa situação quase tão frágil quanto a minha 53 anos antes. Ficou evidente que precisava ficar lá cuidando daquela situação, mas ainda em dezembro topei assim como que casualmente com o edital de um concurso do governo do Espírito Santo - terra do amigaço que tem sido o companheiro mais presente & leal nos últimos anos.

Resultado: nove meses depois de encontrar o edital (acreditem: nove!) estou nomeado e empossado como um Especialista em Desenvolvimento Humano e Social do Estado do Espírito Santo - um título que tem tanto a ver com tudo o que veio antes que espero que tenha a oportunidade de se realizar de fato, não ficando meramente no nível dos rótulos burocráticos. Como isso se dará no cotidiano concreto, ainda não sei: ainda está para começar. Mas o contraste já por definição com os 20 anos anteriores, de batalhas muitas sem respaldo institucional nenhum, é suficiente para sugerir que começa uma 5.ª vida, nesta 15.ª cidade onde já morei ou trabalhei (bom, pode ser apenas a 12.ª, se contar as 4 da Baixada Santista como uma só...)

Acho que até posso pedir aos amigos que me desejem força, luz & sorte nesse momento, né? ;)




03 setembro 2011

Colaborando: Nota do COMANDO DE GREVE dos servidores municipais de São Paulo - JUSTÍSSIMO!

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POUCAS VEZES VI UMA GREVE TÃO JUSTIFICADA QUANTO ESTA, e no entanto... cadê vocês, amigos paulistanos de esquerda? Usar os serviços públicos de Sampa e não apoiar essa greve é ser conivente com essa bárbara exploração! No momento estou a 400 Km daí, mas sei bem de quê realidade se trata, e tentarei colaborar NO MÍNIMO ajudando a circular a nota abaixo!  (Ralf)

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O SINDSEP – SINDICATO DOS TRABALHADORES NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AUTARQUIAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO informa à população da Cidade de São Paulo que:

1) Os servidores municipais entraram em seu quarto dia de greve e paralisam vários serviços no município.

2) Nossa greve é fruto da intransigência do governo municipal em negociar nossa pauta de reivindicações, entregue no dia 18/02/11.

3) O governo mente quando diz que deu um reajuste de 15%. Na verdade aumentou o chamado “piso mínimo”, que é a soma do padrão e de todas as gratificações, ou seja, se algum servidor ainda receber menos que R$ 630,00, será feito um complemento (abono) para chegar neste valor. Essa medida atingiu apenas 10.000 trabalhadores aposentados.

4) O governo mente quando diz que o SINDSEP recusou 11,23%. A verdade é que essa proposta beneficiaria exclusivamente o Quadro da Saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem) e mesmo assim, só a partir de janeiro de 2012.

5) O próprio TCM (Tribunal de Contas do Município) publicou no DOC (08/07/2011, pgs 79 a 92) seu parecer das contas da Prefeitura relativas ao ano de 2010, que diz: “Os dispêndios com pessoal, no exercício atingiram a ordem de 29% da Receita Total Consolidada, menor que em 2009 quando o total da despesa representou 32%” e conclui “ a revisão anual acumulada dos vencimentos nos últimos seis exercícios foi de apenas 0,33%. As revisões salariais concedidas com base no disposto no artigo 1º da Lei Municipal no. 13.303/02, desde o exercício de 2005 foram de:
- 2005 – 0,10%
- 2006 – 0,10%
- 2007 – 0,10%
- 2008 – 0,01%
- 2009 - 0,01%
- 2010 – 0,01%
Sobre os reajustes quadrimestrais: em apenas dois dos dezoito últimos quadrimestres houve concessão de reajustes
- 1,17% em novembro de 2005 e
- 0,97% em novembro de 2006.
Perfazendo um reajuste acumulado de 2,15%, em relação 30,96% do incide do IPC-FIPE acumulado no período”.

6) A política salarial adotada pelo prefeito é de divisionismo e exclusões, pois gratificação não é salário.

7) Com isso nosso salário padrão(inicial) para servidores de 40 horas é de:
- nível básico - R$ 440,39
- nível médio - R$ 645,74
- nível superior - R$ 1.838,47, conforme Diário Oficial de 04 de junho de 2011.

8) O Prefeito, em junho deste ano reajustou seu salário em 95% (noventa e cinco por cento), em 294% (duzentos e noventa e quatro por cento) o do Vice-Prefeito e em 251% (duzentos e cinqüenta e um por cento) o dos secretário municipais. O restante do funcionalismo, neste ano de 2011, recebeu 0,01%!

9) A greve é o último recurso dos servidores para exigirem seus direitos, nossas perdas de 39,79%(janeiro 2004 a dezembro de 2010), são fruto de uma lei salarial que arrocha nossos salários.

Diante disso propomos:

• MANUTENÇÃO DA GREVE DO FUNCIONALISMO COM NOVA ASSEMBLÉIA DIA 05 DE SETEMBRO ÀS 10 HORAS EM FRENTE AO GABINETE DO PREFEITO
• SUSPENSÃO DA GREVE NO SERVIÇO FUNERÁRIO POR CONTA DA DECISÃO JUDICIAL, QUE É UM ATAQUE AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE
• ABERTURA IMEDIATA DAS NEGOCIAÇÕES, FIM DAS RETALIAÇÕES E DE PERSEGUIÇÕES POR CONTA DA GREVE
• PAGAMENTO DOS DIAS PARADOS SEM LANÇAMENTO DE FALTAS


SEM FUNCIONÁRIO PUBLICO A CIDADE PARA
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27 agosto 2011

A Defesa da Educação entre os "Movimentos que São o que Dizem" e a "Legião dos Inocentes Úteis a Causas Nocivas"

.Ralf Rickli • julho-agosto de 2011

EXISTEM MOVIMENTOS E LUTAS QUE SÃO O QUE DIZEM - e existem os que alegam objetivos que parecem inquestionáveis com a finalidade de camuflar intenções para lá de questionáveis. Pra facilitar, vou chamar aqui de MOVISSÃO (MOVimentoS que SÃO o que dizem) e de MOVINÃO (espero que não precise explicar...)


Não é que todo mundo nos MOVINÃO seja mal intencionado! Pelo contrário, a camuflagem visa especialmente a atrair as multidões afetadas pela Síndrome de BOIEQ (BOas Intenções EQuivocadas), multidões que também poderíamos chamar de LIUCAN (Legião dos Inocentes Úteis a CAusas Nocivas), ou seja: a parte passiva no vasto campo das instituições humanas onde quem não está enganando está enganado, e vice-versa.


Também não é que todo mundo nos MOVISSÃO seja o que diz: provavelmente nunca houve ajuntamento humano sem quintas-colunas e caroneiros com intenções privadas - problema que não é simples e tem que ficar pra outro dia: o que é preciso agora é distinguir os MOVSÃO dos MOVNÃO pra ver em seguida como isso se aplica a um campo específico que está na ordem do dia.


Talvez não haja pratos mais cheios para o MOVINÃO usar de isca para a Legião dos Inocente Úteis que as palavras Educação, Liberdade de Expressão e Paz, além de motes como Chega de Corrupção.


Não estou dizendo que todo mundo que usa essas palavras seja mal intencionado! É óbvio que elas apontam para causas boas, objetivos justificadamente desejáveis - e é por isso que servem tão bem como disfarce... e por isso que cada uso seu deve acordar nosso olho vivo, nossa atividade crítica - palavra que no sério não significa 'atacar' e sim 'passar por um crivo' (isto é, 'peneira').


E talvez a primeira pista de se alguém pretende-mesmo-o-que-diz seja a objetividade ao se manifestar, o dar nome aos bois.


Exemplo: gritar "basta de corrupção": é preciso especificar de quê pessoas ou instituições específicas estou reivindicando que executem os atos concretos de investigar, afastar, punir, restabelecer um funcionamento correto.


E isso também envolve dar apoio a essas pessoas ou instituições para a execução das tarefas que reivindiquei, inclusive com o reconhecimento do que já tenham realizado de positivo - pois, se devem executar, precisam ter força para executar, de modo que atacá-las e enfraquecê-las não ajuda, e sim dificulta a obtenção dos objetivos.


E se eu achar que as pessoas encarregadas não são competentes os idôneas? Então me cabe mostrar isso com dados concretos, sem omissões que falseiem a imagem de conjunto, e dizer o que proponho no lugar.


Além disso, é claro que devo nomear especificamente cada caso do qual tenho pistas consistentes, com todos os envolvidos, tanto os vendedores quanto os compradores das vantagens ilícitas. - A propósito, não é esquisito que no caso do mensalão só se costume acusar os supostos corruptores (compradores), e nos casos da compra de favores por agentes privados, só os vendedores? Mas hora dessas volto a isso. No momento a atenção é requerida com mais urgência pelo seguinte: 


AS LUTAS PELA EDUCAÇÃO no MOVISSÃO e no MOVINÃO. Não faz muito tempo, causou furor na internet o vídeo em que a professora Amanda Gurgel, do Rio Grande do Norte, aparece "passando um sabão" nas autoridades do seu estado, cara a cara com elas numa audiência pública sobre a educação. (Ainda não viu? Basta buscar no YouTube com o nome dela)


Interessante que a fala da profª Amanda teve um foco único: a questão salarial. Para ela, antes de uma melhoria nesse sentido nem adianta discutir qualquer outro aspecto da questão "qualidade da educação". E, como vamos detalhar mais adiante, sua reivindicação ali não é outra senão a dos professores atualmente em greve em quase metade dos estados brasileiros.


E por falar nessa greve... onde está agora a multidão que compartilhou o vídeo da profª Amanda na net com rasgados elogios? Está dando continuidade à mesma luta com apoio à greve, claro e inequívoco? Eu, pelo menos, não estou vendo; tenho visto uns chamamentos genéricos a manifestações "pela educação" que sequer mencionam a greve e seu motivo específico. Será que quem compartilhou estava mesmo interessado nos objetivos da luta da profª Amanda, ou estava apenas curtindo um prazerzinho de desforra por ver alguém peitando autoridades, "aqueles que têm poder enquanto eu não tenho"?


Neste ponto é preciso advertir depressa: eu mesmo não acho que a luta pela qualidade da educação se restrinja à questão salarial. Neste momento ela é essencial sim (já veremos por quê) e não pode deixar de ser mencionada, mas também existe uma infinidade de problemas decorrentes da insistência em atrelar os processos educativos a formatos ineficientes e superados, e da preparação quase sempre absolutamente inadequada que os professores recebem nos seus cursos de formação.


Com os dois campos acima mais o salarial, já temos três campos específicos aos quais dirigirmos manifestações pela educação - embora ainda seja preciso detalhar a favor do quê e contra o quê estamos nos posicionando em cada um desses campos.


No entanto a maior parte dos convites que vemos na net é para manifestações genéricas, inespecíficas - p.ex. um certo "Protesto a favor da educação". Ué... mas existe alguém que seja contra a educação? De verdade?


Neste ponto podem me responder os protestos não são a favor da mera existência, e sim da qualidade. Ótimo, acima eu também falei de questões de qualidade que me preocupam - e então pergunto: em qual qualidade os organizadores estão pensando? Pois há concepções absolutamente diversas do que sejam os objetivos da educação, e qualidade tem a ver com eficiência no cumprimento de objetivos. Quer dizer: uma escola de altíssima qualidade para quem acredita no objetivo X pode parecer de péssima qualidade para quem acredita no objetivo Y.


No momento não pretendo me estender sobre esta frente que dá pano pra manga, e a deixo amarrada no seguinte poste: quem viu esta notícia? "SOBRAM 76 MIL VAGAS EM CURSO DO MEC PARA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES" (ver link 1 no final). Ou seja: o governo federal criou e ofereceu canais gratuitos de aperfeiçoamento de professores, e só houve procura para 11% das vagas. Isso indica falhas no projeto, ou problemas na autoconsciência dos professores? Garanto que incorrerá em maniqueísmo falseador quem marcar apenas uma dessas duas respostas! Mas o que quero mesmo destacar é que essa informação foi divulgada na mesma época do vídeo da profª Amanda Gurgel e do chamamento ao "Protesto a favor da educação". Por que não vi ninguém comentando esse dado na net?


Enfim, a palavra "protesto" não faz sentido se não for contra algo ou contra alguém: se for só "a favor" é manifestação, mas não cabe a palavra protesto - e os organizadores não devem ignorar essa característica da palavra. Por que então lançaram com o nome de protesto esse movimento cujo "a favor" tem tudo para conquistar legiões de bem intencionados, porém deixaram em branco o lugar do "contra quem"?


Verdade que o "contra quem" está em branco no título e nos materiais de apresentações principais, mas em inúmeros comentários e materiais secundários aparecem expressões como "o descaso do governo com a educação". E aí só posso olhar e perguntar: governo? Qual?


RESPONSABILIZAR O GOVERNO. MAS QUAL? A Federação brasileira (ou União) é governada por três poderes independentes, não poucas vezes contraditórios (fora um monte de instâncias que não se encaixam claramente nesse esquema básico). Além desses 3 temos os 27 executivos, 27 legislativos e 27 judiciários dos estados mais DF... sem falar dos 5565 executivos e 5565 legislativos municipais. Do descaso de quais dessas 11.214 instâncias de poder vocês estão falando, meus senhores?


Não, não estou estando cínico: está aí a luta pra lá de séria dos professores em greve, que decorre precisamente das contradições entre essas diferentes instâncias de poder - e também era isso o que estava por trás do discurso da profª Amanda, que tantos reproduziram sem nem conhecer os fatos a que se referia.


Acontece que já faz três anos que o governo federal instituiu um piso mínimo para a remuneração de professores no Brasil, através da lei 11.738 de 16/07/2008. Entre outras coisas, a lei afirma que nenhum professor brasileiro poderá trabalhar mais que 40 horas semanais, e que por um tal trabalho de 40 horas semanais nenhum poderá receber menos que (em valores atualizados para 2011 nos termos da lei) R$ 1.187. (Links 2, 3 e 4).


Pouco por 40 horas de tão tremendo trabalho? Verdade - mas já um começo de melhora... que grande parte dos governos estaduais e municipais vem se recusando a cumprir.


Os senhores estão entendendo isso? Que a normalidade institucional do país está sendo afrontada pela insistência dos estados em não melhorarem as condições dos professores nem nesse mínimo ordenado pelo governo federal?


Não é evidente que num tal momento todos que de fato querem o bem da educação deveriam apoiar a autoridade do governo federal nesse embate? E que quando se dá a entender que "o governo" é omisso e relapso em relação à educação, sem especificar qual ou quais governos, está se tentando subrepticiamente transferir a culpa, na opinião pública, dos verdadeiros culpados justamente para a instância que mais está a favor da educação nessa história, o governo federal?


Ou seja: é evidente que não se trata na verdade de nenhuma luta pela educação e sim de arregimentação de inocentes úteis para enfraquecer um governo cuja grande "falha" é apenas não estar nas mãos dos grupos de poder tradicionais no país - justamente os que mais vêm resistindo a cumprir até mesmo essa "lei do passo insuficiente a frente, mas ainda assim um passo".


O TAMANHO DO "PEQUENO PASSO". Acabo de dizer que a lei federal do piso salarial ainda é um passo insuficiente, e muitos poderiam dizer: então por que esse governo interessado na educação não avança de vez até os R$ 1.597,87 reivindicados como piso pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação? (Link 5). Afinal, o que são R$ 410 a mais?


Pois está aí um ótimo exemplo de que para participar da política precisamos também de um "piso de responsabilidade", se de fato queremos que nossa ação seja benéfica - e esse mínimo indispensável de responsabilidade consiste em buscar se informar consistemente da realidade do assunto antes de sair expressando qualquer opinião: alguém aqui tem noção de por quantos professores o número acima teria que ser multiplicado?


Eu mesmo não tenho esse número, mas tenho alguns outros que dão uma noção suficiente da ordem de grandeza em questão: em GATTI & BARRETO (link 6) podemos ler que professores e profissionais de saúde representam a principal carga orçamentária dos estados nacionais. Em 2006 o cargo de professor respondeu por não menos que 8,4% dos empregos existentes no Brasil, somente abaixo dos escriturários (15,2%) e dos trabalhadores dos serviços (14,9%), e muito acima do conjunto da indústria extrativa e da construção civil que, apesar de serem geralmente usadas como principal indicador das variações da oferta de empregos, não respondem por mais de 4% destes - menos que metade dos empregos como professor!


Em números absolutos, nesse mesmo 2006 a RAIS registrou 2.803.761 empregos como professor no Brasil, sendo 77% na educação básica (ensinos infantil+fundamental+médio), ou seja: 2.159.269.


Vamos supor (o que não é real mas dá uma ideia dos números) que esses 2.159.269 professores ganhassem os mesmos 930 reais que a profª Amanda Gurgel contou serem o seu salário: com seus encargos, isso significaria uma folha de pagamentos de mais de R$ 3.230.000.000 (três bilhões e duzentos e trinta milhões de reais) por mês.


O aumento do salário de cada um desses professores até o piso já determinado pelo governo federal e contestado pelos estados significaria (com encargos) um acréscimo mensal da ordem 870 milhões de reais, ou aproximadamente mais 10 bilhões e meio de reais investidos por ano apenas nessa aspecto (dos muitos da educação) que é a remuneração dos professores.


No conjunto de todas as necessidades de um país, quê governo pode modificar com leviandade números dessa ordem em seu orçamento?


Com isso não estou dizendo que acho irresponsáveis os professores que já começam a pedir o piso de R$ 1.597,87! De jeito nenhum: é a parte que lhes cabe jogar no jogo! Mas quanto aos demais cidadãos interessados em lutar pela educação, já não é um grande passo que passem a declarar seu apoio ao governo federal na imposição do piso de R$ 1.187, a que tantos estados e municípios resistem?


E quanto a quem vier falar do "descaso do governo com a educação", vou pedir que explicite de qual governo está falando.


Se não souber dizer, vou sugerir que tenha a responsabilidade de se informar antes de abrir a boca, para não acabar dando tiro no pé.


Mas se me disser que fala do governo federal, vou simplesmente mandar pastar: não tenho tempo a perder com esse segundo e muito grave nível de irresponsabilidade - no caso dos inocentes úteis -, e menos ainda com a nauseante perfídia de seus falsíssimos arregimentadores.


FONTES REFERIDAS
(acesso em 26 jun. 2011) 

(1) http://noticias.uol.com.br/educacao/2011/05/27/sobram-76-mil-vagas-em-curso-do-mec-para-formacao-de-professores.jhtm
(2) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11738.htm
(3) http://noticias.uol.com.br/educacao/2011/08/16/professores-de-escolas-publicas-fazem-paralisacao-nacional-para-cobrar-cumprimento-da-lei-do-piso.jhtm
(4) http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18290
(5) http://www.mundosindical.com.br/sindicalismo/noticias/noticia.asp?id=6916
(6) GATTI, Bernadete Angelina (coord.) & BARRETO, Elba Siqueira de Sá. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO, 2009. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001846/184682por.pdf . Acesso em 26 jun. 2011.



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Ralf Rickli • arte em palavras, ideias e educação
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21 agosto 2011

Zizek e H.Villela: 2 textos ótimos sobre o momento histórico mundial (deu no Azenha)

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Não tenham preguiça de ler o texto um pouco longo de Slavoj Zizek: é a primeira análise profunda e abrangente que encontro do conjunto de diferentes levantes de 2011; a primeira que faz jus à complexidade da realidade. (O quanto eu gostaria que tudo fosse mais simples!, mas o fato é que não é: quem fala de qualquer coisa real como se não fosse complexa, ou está enganado ou está enganando!)

O breve artigo de Heloísa Villela faz um excelente contraponto ao de Zizek por trazer uma imagem da situação estadunidense, enquanto este trata basicamente da Europa e espaço islâmico.

Deixo claro que não acho que as populações do mundo estejam acordando com seu levante enquanto a do Brasil continua passiva e adormecida; primeiro porque, como mostra Zizek, esses levantes são justificadíssimos porém definitivamente lhes falta consciência (dos seus próprios contextos - tanto o próximo quanto o mais amplo - bem como de si mesmos); segundo, porque repetir aqui o mesmo tipo de levante seria uma inconsciência ainda maior: é claro que há milhares de questões graves a enfrentar no Brasil - mas na maior parte do resto do mundo há dezenas de milhares.

E quando a secretária-geral da CSI - maior central sindical do mundo - vem ao Brasil "pedir ajuda a Dilma para defender os pontos de vista trabalhistas" num mundo que se tornou hoje "um lugar muito perigoso para os trabalhadores", pois acredita que "o Brasil e sua presidenta colocam as pessoas no centro das políticas nacionais” e "possuem liderança global" (*), fica ainda mais evidente o quanto aqui e agora é um tiro no pé qualquer protesto que não identifique com a maior clareza, objetividade e detalhamento quais são suas metas concretas e quem são seus inimigos, e que não veja nosso executivo federal atual como um aliado a quem fortalecer com sugestões e reivindicações, mas jamais a combater e enfraquecer.

Ou seja: em nenhum lugar do mundo hoje o momento é tão outro quanto no Brasil, e querer transferir para cá atitudes geradas por outro tipo de contexto seria mais uma vez um exemplo de "ideias fora do lugar", ou seja: da subserviência mental do complexo de vira-lata que fantasia que o mundo de verdade é lá fora e somos sempre nós que estamos atrasados ou atravessando o passo, enquanto que neste momento o mundo inteiro olha para nós justamente como os que estão com o passo menos inadequado.

(*) http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18274

Obs.: TODO CRÉDITO AO LUIZ CARLOS AZENHA, E AO COLETIVO DA VILA VUDU QUE TRADUZIU O TEXTO DE ZIZEK, E AINDA À AGÊNCIA CARTA MAIOR, POR COLOCAREM ESTES MATERIAIS EM CIRCULAÇÃO NO BRASIL. Estou aqui apenas ajudando a ecoar, reproduzindo no meu próprio blog apenas para possibilitar uma determinada recombinação desses materiais.




ASSALTANTES DE LOJINHAS DO MUNDO, UNI-VOS...

19/8/2011

por Slavoj Zižek, London Review of Books, vol. 33, n, 16
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/assaltantes-de-lojinhas-do-mundo-uni-vos.html
Tradução do Coletivo da Vila Vudu

A repetição, segundo Hegel, tem papel crucial na história: se alguma coisa acontece uma única vez, pode ser descartada como acidente, algo que poderia ter sido evitado se a situação tivesse sido conduzida de modo diferente; mas quando um mesmo evento repete-se, é sinal de que está em curso um processo histórico mais profundo. Quando Napoleão foi derrotado em Leipzig em 1813, pareceu má sorte; quando foi derrotado outra vez em Waterloo, ficou claro que seu tempo acabara. Vale o mesmo para a continuada crise financeira. Setembro de 2008 foi apresentado como anomalia que podia ser corrigida com melhores regulações e controles; hoje se acumulam sinais de quebradeira nas finanças e já é evidente que estamos lidando com fenômeno estrutural.

Dizem e repetem e repetem que atravessamos uma crise da dívida e que todos temos de partilhar a carga e apertar os cintos. Todos, exceto os (muito) ricos. Aumentar impostos sobre muito ricos é tabu: se se fizer isso, diz o mesmo argumento, os ricos não terão incentivo para investir, haverá menos empregos e todos sofreremos mais. A única salvação, nesses tempos duros, é os pobres ficarem cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. O que devem fazer os pobres? O que podem fazer?

Embora os tumultos de rua na Grã-Bretanha tenham sido desencadeados pela morte de Mark Duggan, todos concordam que manifestam mal-estar mais profundo – mas que tipo de mal-estar? Como quando se queimaram carros nos subúrbios de Paris em 2005, os agitadores de rua na Grã-Bretanha não tinham mensagem alguma a comunicar. (Há aí claro contraste com as manifestações massivas de estudantes em novembro de 2010, que também geraram violência. Os estudantes deixaram bem claro que rejeitavam as propostas de reformas na educação superior.) Por isso é difícil pensar sobre os agitadores de rua britânicos em termos marxistas, como uma instância da emergência do sujeito revolucionário; encaixam-se muito mais facilmente na noção hegeliana de “ralé”, “escória” [orig. ‘rabble’], espaços marginais organizados, que manifestam o próprio descontentamento mediante explosões ‘irracionais’ de violência destrutiva – que Hegel chamava de “negatividade abstrata”.

Há uma velha história sobre um operário suspeito de roubo: todas as tardes, ao sair da fábrica, o carrinho-de-mão que ele empurra é cuidadosamente revistado. Os guardas nada encontram; o carrinho está sempre limpo. Até que a ficha cai: o operário roubava um carrinho-de-mão por dia. Os guardas não viam a mais visível verdade, exatamente como os jornalistas e especialistas e autoridades que comentaram os tumultos de rua. Dizem-nos que a desintegração dos regimes comunistas no início dos anos 1990s marcaram o fim da ideologia: o tempo dos projetos ideológicos em grande escala que culminaram em catástrofe totalitária está acabado; teríamos entrado numa nova era de política racional, pragmática. Se o lugar-comum de que vivemos numa era pós-ideológica é correto em algum sentido, pode-se ver nas recentes explosões de violência. Foi protesto de grau-zero, ação violenta sem demandas. Em sua tentativa desesperada para encontrar algum sentido nos tumultos, sociólogos e jornalistas deixaram passar sem qualquer registro o enigma que os tumultos nos impuseram.

Os que protestavam, oprimidos e socialmente excluídos de facto, não vivem risco de morrer de fome. Gente que sobrevive em condições materiais muito piores, sem falar das condições de opressão física e ideológica, têm conseguido organizar-se em forças políticas com agendas políticas claras. O fato de os agitadores não terem programa é, portanto, ele mesmo, fato que exige interpretação: diz muito sobre nossa pregação político-ideológica e sobre o tipo de sociedade em que vivemos – uma sociedade que celebra a escolha, mas na qual a única escolha possível é um consenso democrático obrigatório praticado como repetição sem pensamento [ing. a blind acting out].

Nenhuma oposição ao sistema consegue articular-se como alternativa realista, sequer como projeto utópico, e só consegue assumir a forma de explosão sem meta ou significado. O que significaria nossa tão celebrada liberdade para escolher, se a única escolha possível é jogar pelas regras ou a violência (auto)destrutiva?

Alain Badiou argumentou que vivemos num espaço social que cada dia mais é experienciado como “sem mundo” [orig, ‘worldless’]: nesse espaço, a única forma que o protesto pode assumir é a violência sem sentido.

Talvez aí esteja um dos principais perigos do capitalismo: embora, porque é global, o capitalismo inclua todo o mundo, ele mantém uma constelação ideológica “sem mundo”, na qual as pessoas são privadas dos meios conhecidos para localizar o significado. A lição principal da globalização é que o capitalismo pode acomodar-se a todas as civilizações, cristã, hindu ou budista, do Ocidente e do Oriente: não há qualquer ‘visão de mundo capitalista’, nenhuma ‘civilização capitalista’ propriamente dita. A dimensão global do capitalismo manifesta a verdade sem significado.

A primeira conclusão a ser extraída dos tumultos de rua, portanto, é que nenhuma das reações aos tumultos, seja a conservadora seja a liberal, é adequada.

A reação conservadora era previsível: não há o que justifique tal vandalismo; é preciso usar os meios necessários para restaurar a ordem; para evitar que explosões como aquelas se repitam no futuro, precisamos, não de mais tolerância e ajuda social, mas de mais disciplina, mais trabalho duro e senso de responsabilidade.

O que há de errado nessa narrativa não é só que ela ignora a situação social de desespero que empurra os jovens para explosões de violência mas, e talvez mais importanre, que ela ignora o modo como essas explosões são eco das próprias premissas ocultas da ideologia conservadora. Quando, nos anos 1990s, os Conservadores lançaram sua campanha de “de volta ao básico”, o complemento obseno que aí havia foi bem claramente revelado por Norman Tebbitt: “O homem não é só animal social, também é animal territorial; é indispensável incluir em nossa agenda a necessidade de satisfazer esses instintos humanos básicos de tribalismo e de territorialidade.” Porque aquela “volta ao básico” tratava, realmente, disso: de soltar os bárbaros que vegetam por baixo de nossa sociedade burguesa aparentemente civilizada, satisfazendo os “instintos básicos” dos bárbaros.

Nos anos 1960s, Herbert Marcuse introduziu o conceito de “dessublimação repressiva”, para explicar a “revolução sexual”: os impulsos humanos podem ser dessublimados, ganhar rédea solta, e, mesmo assim, permanecer submetidos aos controle capitalista – vide a indústria pornográfica [e as novelas e programas humorísticos da televisão brasileira (NTs)]. Nas ruas britânicas, durante os tumultos, o que se viu não foram homens reduzidos a ‘bestas’, mas a forma nua da ‘besta’ produzida pela ideologia capitalista.

Por sua vez, os liberais de esquerda, não menos previsíveis, agarraram-se ao seu mantra sobre programas sociais e iniciativas de integração, as quais, negligenciadas, teriam privado a segunda e terceira gerações dos imigrantes de suas possibilidades econômicas e sociais: explosões de violência seriam o único meio que ainda têm para articular a insatisfação. Em vez de nos permitir embarcar indulgentemente em fantasias de vingança, devemos nos esforçar para entender as causas profundas dos atos de violência. Saberíamos nós o que significa ser jovem em área pobre racialmente ‘complexa’, ser considerado suspeito a priori nas batidas policiais, sempre agredidos por policiais, não só desempregado mas, muitas vezes, inimpregável, sem esperanças de futuro? A implicação é que as próprias condições em que essas pessoas encontram-se tornariam inevitável que tomassem as ruas.

O problema dessa narrativa é que só lista as condições objetivas dos tumultos. ‘Agitar’, ‘tumultuar’ seria fazer uma declaração subjetiva, declarar implicitamente como alguém se relaciona com as próprias condições objetivas de vida.

Vivemos tempos cínicos. Não é difícil imaginar um agitador que, apanhado quando saqueava e incendiava uma loja e interrogado sobre suas razões, responda usando a linguagem dos sociólogos e assistentes sociais: que fale de menor mobilidade social, insegurança crescente, desintegração da autoridade paterna, carência de atenção materna na infância. Ele sabe portanto o que faz, mas mesmo assim faz.

É perda de tempo ponderar qual dessas duas reações, a conservadora ou a liberal, é a pior: como Stálin diria, as duas são piores, e isso inclui o alerta que os dois lados dão, de que o real perigo dessas explosões está na previsível reação racista da “maioria silenciosa”.

Uma das formas que essa reação assumiu em Londres foi a atividade ‘tribal’ de comunidades locais (turcos, caribenhos, sikhs), que rapidamente organizaram unidades por ‘tribos’ para vigiar suas propriedades. Os donos de lojas seriam uma pequena burguesia que defende sua propriedade contra um genuíno, embora violento, protesto contra o sistema? Ou seriam representantes da classe trabalhadora combatendo contra forças da desintegração social? Também nesse caso, deve-se rejeitar a ordem para escolher um dos lados.

A verdade é que o conflito aconteceu entre dois pólos de oprimidos: os que tiveram sucesso e conseguiram operar dentro do sistema versus os frustrados demais para continuar tentando. A violência dos agitadores foi dirigida quase exclusivamente contra seus respectivos grupos. Os carros queimados e as lojas saqueadas não foram queimados e saqueadas em bairros ricos, mas nos próprios bairros onde vivem os incendiadores e saqueadores. Não há conflito entre diferentes partes da sociedade; o conflito é, no seu aspecto mais radical, entre sociedade e sociedade, entre os que têm tudo e os que nada têm, a perder; os que nada apostaram na própria comunidade e os que fizeram as mais altas apostas.

Zygmunt Bauman caracterizou os tumultos como “atos de consumidores defeituosos e não qualificados”: sobretudo, foram manifestação de um desejo consumista atuado [orig. enacted] quando incapaz de realizar-se do modo ‘certo’ – mediante um ato de compra. Nessa medida, os tumultos também contêm um momento de protesto genuíno, sob a forma de resposta irônica à ideologia do consumo: “Vocês nos convocam para consumir e, simultaneamente, nos negam os meios para consumir do jeito ‘certo’. – Estamos consumido, do único modo possível para nós!”

Os tumultos são demonstração da força material da ideologia – excessiva, talvez, em tempos de ‘sociedade pós-ideológica’. De um ponto de vista ideológico, o problema dos tumultos não está na violência como tal, mas no fato de que a violência não é verdadeiramente autoafirmativa. É raiva e desespero impotentes mascarados como exibição de força: é inveja travestida de carnaval triunfante.

Os tumultos devem ser situados também em relação a outro tipo de violência que a maioria liberal percebe hoje como ameaça ao nosso modo de vida: os ataques terroristas e os suicidas-bomba. Nas duas instâncias, violência e contraviolência são apanhadas num círculo vicioso, as duas gerando as mesmas forças que tentam derrotar. Nos dois casos, estamos lidando com passages à l’acte [fr. no original] cegas, nas quais a violência é admissão implícita de impotência. A diferença é que, ao contrário dos tumultos na Grã-Bretanha ou em Paris, os ataques terroristas são postos a serviço de um significado – o Significado absoluto que a religião assegura.

Mas os levantes árabes não foram ato coletivo de resistência que rejeitaram a falsa alternativa entre violência autodestrutiva e fundamentalismo religioso? Infelizmente, o verão egípcio de 2011 será lembrado como o fim da revolução, quando seu potencial emancipatório foi sufocado. Os coveiros são o exército e os islâmicos. Os contornos do pacto entre o exército (que é o exército de Mubarak) e os islâmicos (que foram marginalizados durante os primeiros meses do levante, mas agora estão ganhando terreno) são cada dia mais claros: os islâmicos tolerarão os privilégios materiais do exército e, em troca, garantirão a hegemonia ideológica. Os perdedores serão os liberais pró-ocidente, fracos demais – apesar do dinheiro da CIA – para ‘promover a democracia’; e os verdadeiros agentes dos levantes da primavera, uma emergente esquerda secular que tentava montar uma rede de organizações da sociedade civil, a partir dos sindicatos e das feministas.

A situação econômica em rápida deterioração, logo, mais cedo ou mais tarde, levará os pobres, grandes ausentes dos levantes da primavera árabe, às ruas. É bem provável que haja nova explosão, e a pergunta difícil para os sujeitos políticos egípcios é: quem dirigirá, com sucesso, a ira dos pobres? Quem traduzirá essa ira em termos de programa político: a nova esquerda secular ou os islâmicos?

A reação predominante na opinião pública ocidental ao pacto entre islâmicos e o exército no Egito será, sem dúvida, um show de cinismo: nos dirão que, como o caso do Irã (não árabe) mostrou claramente, levantes populares em países árabes sempre terminam em islamismo militante. Mubarak aparecerá como diabo muito menos perigoso – melhor ficar com diabo conhecido que lidar com forças de emancipação. Contra tal cinismo, é preciso permanecer incondicionalmente aliado ao núcleo radical-emancipatório do levante egípcio.

Mas é preciso evitar também o narcisismo da causa perdida: é muito fácil admirar a beleza sublime dos levantes condenados ao fracasso.

Hoje, a esquerda enfrenta o problema da ‘negação determinada’ [orig. ‘determinate negation’]: que nova ordem deve substituir a velha ordem, depois do levante, quando houver passado o sublime entusiasmo do primeiro momento? Nesse contexto, o manifesto dos Indignados da Espanha, lançado depois das manifestações em maio, é revelador. O primeiro traço que chama a atenção é o decidido tom apolítico: “Uns de nós consideram-se progressistas, outros conservadores. Uns são religiosos crentes, outros não. Uns têm ideologias claramente definidas, outros são apolíticos, mas todos estamos preocupados e zangados com o quadro político, econômico e social que vemos à nossa volta: corrupção de políticos, empresários, banqueiros, que nos deixam indefesos, sem voz.” Protestam em nome de “verdades inalienáveis que não vemos respeitadas em nossa sociedade: o direito a moradia, emprego, cultura, saúde, participação política, livre desenvolvimento pessoal, direitos do consumidor e a uma vida saudável e feliz”. Rejeitando a violência, clamam por uma “revolução ética. Em vez de pôr o dinheiro acima dos seres humanos, devemos pô-lo a nosso serviço. Somos pessoas, não produtos. Não sou o que compro, porque compro ou de quem compro.”

Quem serão os agentes dessa revolução? Os Indignados espanhóis descartam todos os políticos, a esquerda e a direita, como corruptos e controlados pela ganância e pela sede de poder. Mesmo assim, o manifesto apresenta várias demandas, mas… dirigidas a quem? Não a eles mesmos: os Indignados (ainda) não declaram que ninguém mais fará por eles, que eles mesmo têm de ser a mudança que querem ver.

E aí está a fragilidade fatal dos recentes protestos: manifestam uma raiva autêncica que não consegue transformar-se em programa de ação positiva para mudança sociopolítica. Manifestam um espírito de revolta, sem revolução.

A situação na Grécia parece mais promissora, provavelmente devido a uma tradição mais persistente de auto-organização progressista (que desapareceu na Espanha depois da queda do regime de Franco). Mas mesmo na Grécia o movimento de protesto padece das limitações da auto-organização: os que protestam estão mantendo um espaço de liberdade igualitária sem autoridade central, um espaço público no qual todos têm o mesmo tempo para falar etc. Quando os manifestantes começaram a discutir o passo seguinte, como avançar além dos simples protestos, a maioria concluiu que não se precisava de novo partido e que não era o caso de tentar tomar o poder do estado; que o movimento faria pressão sobre os partidos políticos. Evidentemente, é muito pouco para forçar uma reorganização de toda a vida social. Para chegar lá, é indispensável um corpo forte, competente para tomar decisões rápidas e implementá-las com todo o rigor necessário.



A SOCIEDADE [ESTADUNIDENSE] PARECE ANESTESIADA

por Heloisa Villela, de Washington - 09/08/2001
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/heloisa-villela-a-sociedade-parece-anestesiada.html


Até quando?

É a pergunta que não me sai da cabeça. Existe um ponto a partir do qual tudo vai pelos ares?

O povo toma as ruas, grita, cobra… Londres está pegando fogo. Em Israel, muita gente partiu para o acampamento nas ruas e praças do pais. E aqui nos Estados Unidos, para uma parcela cada vez maior da população, motivo também não falta para exigir mudança. Mas as ruas continuam silenciosas. Verdadeiros túmulos.

Abro o computador e a primeira notícia que aparece, aqui no meu bairro: psiquiatra mata o filho e se mata em seguida. No bilhete que deixou prá trás, a mulher diz que não aguentava mais tentar driblar as dívidas e o preço da mensalidade escolar já que o filho, portador de uma doença mental, não acompanhava o ritmo da escola pública. Foi um ato de desespero. Dar cabo da própria vida seria cruel com o menino, que dependia dela para tantas coisas. Ela preferiu acabar com tudo.

Sei que existem alguns casos dramáticos pelo país afora. Não deveria me surpreender já que a situação de tantas pessoas é mesmo desesperadora e a rede de amparo social é cada vez menor. E vai diminuir ainda mais.

Aqui nos Estados Unidos, a classe média, base da economia do país, está cada vez mais pobre. E os afro-americanos e latinos, então, mais pobres ainda. Segundo a Pew Reseach Center, a distância entre as minorias e os brancos bateu recorde histórico. Entre 2005 e 2009, a renda média das famílias hispânicas, nos Estados Unidos, caiu 66%. A renda das famílias afro-americanas sofreu uma queda de 53% enquanto a renda média das famílias brancas caiu 16%.

O sonho da segurança do teto próprio se desfaz. As dívidas aumentam. Os empregos somem. Um índice de desemprego de 9,1% não é exatamente o fim do mundo. Mas todo mundo sabe que esse índice é uma piada. Uma ginástica estatística aperfeiçoada no governo Bill Clinton, que exclui da pesquisa as pessoas que passaram bom tempo procurando emprego e, por falta de resultado, simplesmente desistiram de tentar achar algo.

A mesma Secretaria do Trabalho que divulga este número desprovido de significado real também publica, discretamente, o índice de pessoas em idade produtiva que estão trabalhando em empregos de horário integral. Ou seja, nada de juntar aqui os que têm um bico de meio expediente ou de algumas horas por semana. Esse índice mostra que apenas 58,1% da mão de obra empregável do país está na ativa. E os outros 42%, estão fazendo o que?

Perto da minha casa, é comum, hoje, ver pessoas homens e mulheres de todo tipo, cor e credo pedindo ajuda com cartazes. Andando entre os carros quando o sinal fecha. Isso não existia. Em visita recente a Nova York, passei pela Tompkins Square, uma praça no lado leste da cidade. Deparei-me com uma fila que dava volta no quarteirão. “É a sopa”, me refrescou a memória uma amiga que morou naquele lugar durante anos. E o que mais chamou nossa atenção: não eram apenas drogados, bêbados, mendigos, como antigamente. Vi famílias inteiras, com carrinho de bebê, criança pequena pela mão, esperando a hora de receber a comida de graça.

E aí me volta a pergunta: até quando essa gente aguenta tudo calada? Ficou muito óbvio, na recente discussão do teto da dívida americana, que nem um partido nem outro tem compromisso com causa alguma. Roderick Harrison, economista e professor da Universidade Howard, aqui em Washington, me disse que está preocupado. Os próximos meses serão ainda mais difíceis, com mais demissões e consumidores assustados, sem dinheiro prá comprar.

Ele tentou responder a minha pergunta. Ou melhor, explicar o atual estado de coisas:

– Faz tempo que estamos caminhando para a ingovernabilidade…

Pior, diz ele, é a falta de organização da sociedade civil. Os partidos, afirmou, já não representam diferentes camadas da população. E a guinada para a direita é visível. Segundo o professor, somente o povo organizado, na rua, cobrando, vai empurrar o partido democrata, e o governo do presidente Barraca Obama, na direção de soluções para os problemas centrais dos país: desemprego e moradia.

Mas a sociedade parece anestesiada. Os únicos que ainda se mexem e vão prá rua são os seguidores do Tea Party, a ala mais radical e direitista do Partido Republicano. Cadê a raiva, a revolta, a indignação?
Por enquanto, vi isso vir à tona somente neste comentário do jornalista Keith Olbermann, que hoje trabalha na Current TV, do ex-vice-presidente Al Gore. Cáustico e sem meias palavras, ele diz o que eu imaginaria que muitos americanos poderiam estar gritando por aí, se soubessem gritar…

http://www.huffingtonpost.com/2011/08/02/olbermann-debt-ceiling-special-comment-protests-obama_n_915957.html
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