Este ano meu tradicional desconforto com o Natal parecia estar com um sabor diferente. Não conseguindo decifrar, resolvi visitar o monge Josefus em seu casebre à beira-brejo.
Comecei tateando: como expor o que ainda não se sabe o que é? Mas mal pronunciei "desconforto com Natal", Josefus atalhou:
- Você então é mais um dos que reclamam que o Natal virou só comércio e comilança, e perdeu a essência espiritual?...
Percebi um quê de ironia que me incomodou um pouco.
- Bom, eu costumava dizer isso, mas agora parece que surgiu algum outro desconforto... De qualquer modo isso não está errado, né - ou o senhor acha que está, monge Josefus?
- Ou sou monge ou sou "senhor", não dá pra ser os dois ao mesmo tempo...
- Tá bom, desculpe. Mas enfim, o que foi que o senh... que você quis insinuar?
- Que não vejo sentido em o cristianismo reclamar de lhe usurparem uma festa que nunca foi dele. Que ele mesmo tentou usurpar.
- Usurpar soa pesado, não acha?
- Não reconhecer o peso das coisas pesadas nunca levou a nada de bom. A palavra não deveria ser usada pra desconversa, pra falsear. É usada quase exclusivamente pra isso mas não deveria... Enfim, você tem noções razoáveis de história e de antropologia, não?
- É, um pouco...
- Mas com certeza sabe que as festas de mudança de estação já existiam milhares de anos antes do cristianismo, talvez dezenas de milhares. Pausas pra tomar fôlego entre as atividades diferentes que as diferentes estações exigiam. Comemorar desfrutando do que se conseguiu produzir com tanto esforço, dar uns dias de férias ao esforço e à seriedade - até mesmo para a capacidade de esforço e seriedade se refazerem, pois já se sabia que novos trancos sempre vêm: mesmo quando a humanidade não tinha inventado necessidades artificiais, a natureza se encarregava de nunca nos deixar na pura moleza...
... E então: se os cristãos queriam comemorar o nascimento do seu inspirador, por que não criaram uma festa nova pra isso? Se é verdade que Jesus trouxe algo novo na história da humanidade, por que comemorar com o que havia de mais velho?
- Ora, monge Josefus, você sabe muito bem que os cristãos cultivam essa idéia estranha: que se um caminho leva até o alto do morro, todos os outros só podem levar a abismos e devem ser destruídos. Como se os morros tivessem um lado só... E então a intenção era justamente destruir costumes antigos colocando os seus no lugar.
- Tem razão, mas digo mais: dois séculos haviam deixado claro que costumes antigos não se deixam suprimir tão facilmente. Então passaram à tática de não tentar suprimir e sim invadir costumes alheios e lhes atribuir significados novos - como se faz ainda hoje quando as igrejas se apossam de estilos musicais criados fora dela, expressões legítimas de outros anseios e experiências dos jovens e do povo em geral, e lhes atocham palavras religiosas que não têm nada a ver com o que a música expressa... Às vezes até fica bonito, mas no fundo é uma tapeação, um engodo...
- Mas monge, você sabe que com isso os cristãos pretendem introduzir luz onde há escuridão, onde as pessoas estão perdidas...
- Pretendem. Mas deviam começar a abrir os olhos para a realidade da história. Onde os cristãos tomaram conta, geralmente o estado de coisas retrocedeu; conquistas luminosas do pensamento, realizadas com atitude humanista, foram abandonadas e substituídas por modos de vida supersticiosos e opressivos... Estude um pouco da história concreta, documentada, e veja: quem representou luz, quem representou trevas a maior parte do tempo?
- Mas, peraí... como é que o senhor, um monge, vem me dizer essas coisas? Parece que não quer deixar pedra sobre pedra do edifício cristão... Desse jeito era melhor eu ter pego direto um livro de Nietzsche...
- Teria sido, se a sífilis não tivesse botado os miolos do coitado do Nietzsche crescentemente em curto, fazendo ele introduzir uma porção de bobeiras novas lá onde deveria ter deixado um chão realmente limpo, na sua sagrada missão de demolição.
- Mas, monge Josefus!...
- Pois é preciso mesmo não deixar pedra sobre pedra, se ainda for para a semente plantada por Jesus germinar e crescer. Em cima dela era pra ter crescido uma planta viva, não um edifício.
- !!!
II
- No fundo está tudo lá no começo do Evangelho de João: o que está no princípio de tudo é lógos: tem a forma de uma fala, um discurso... Costumam traduzir por "Verbo" ou por "Palavra", mas isso ainda é metáfora, metonímia de parte-pelo-todo: "palavra" como unidade seria léxis, não lógos.
... Lógos é o teor de informação que existe em cada coisa fazendo-a ser o que é, e não um pedaço de substância informe. De certa forma o programa de cada coisa, programa que é lógico: teria cabimento um lógos que não fosse lógico?
... Mas a palavra pro-grama não é muito boa porque significa "escrito antes", sugere uma coisa pré-fixada, rígida, e o lógos é como o programa em feitura e desenvolvimento nas mãos do programador; ou melhor: na mente do programador, a qual se torna una com o programa enquanto o pensa e desenvolve: ela é o programa ("o Verbo estava com Deus, e Deus era o Verbo" - é essa a ordem das palavras no original).
... E se por um lado não há separação entre Deus e sua Fala, por outro essa Fala tampouco está antes ou fora, e sim durante e dentro das coisas que "surgiram por meio dela" - ou pelo menos não só fora ou antes das coisas: quem somos nós para declará-la limitada?
... Ou talvez mais precisamente esteja dentro-e-durante de tudo o que está vivo, em processo: "o lógos era a vida". Para quem consegue ler com a mente limpa de doutrinações anteriores, é evidente que o autor não está falando de outra vida, mas da vida - que, aliás, comparece no texto vestida em sua linda palavra "zoé".
E essa vida ainda por cima é "a luz" - e "a luz que ilumina todo homem que vem ao mundo".
- Mas não é "a luz que vem ao mundo e ilumina todo homem"?
- Não, meu caro, no texto grego "que vem ao mundo" se refere a "todo homem", e não a "luz"...
- Eita!...
- Repare que pelo menos até aqui não existe nem um conflito com a descrição do mundo das ciências atuais: a vida que existe e atua nos nossos corpos é luz, energia que chegou à Terra em forma de luz, literalmente. Mas não só a atividade é energia: a substância básica de tudo também é energia, a qual assume sua multiplicidade de formas mediante a informação que a configura (com uso de ainda mais energia).
... Onde termina a informação, onde começa o corpo da luz? Como separar? Não são uma coisa só, mas também não são duas separadas... Uma está com a outra ou é a outra? Não há como determinar um limite interno e... Quem diria! Então a estranheza que o primeiro versículo de João sempre causou não é diferente da estranheza que o pensamento quântico nos causa!...
- Você está querendo dizer "a ciência já decifrou toda a charada"?
- De jeito nenhum! O nível quântico continua enigmático... e além disso aí entram coisas que não são só questão de ciência: eu havia deixado de fora uma palavra da fala de João sobre a luz: "a luz não-enganosa que ilumina todo homem que vem ao mundo". Geralmente se traduz como "verdadeira", mas é interessante que para os gregos só é possível nomear verdade negativamente: é a "ausência de mentira", o "não-enganoso".
... Quer dizer: entra com essa palavra um elemento de julgamento: não é tudo igual; se existe o verdadeiro e não-enganoso, então também pode existir o enganoso. E também está dito: quando a luz "veio para que lhe era próprio", para o mundo "que havia vindo a ser através dela", esse mundo "não a reconheceu" e "o que lhe era próprio não a acolheu ... mas aos que acolheram lhes deu potência de virem a ser filhos de Deus". Entramos em um mundo de cognição (não reconheceu) e de escolha (acolheu x não acolheu), e portanto de liberdade... questões não só de ciência mas de consciência.
... Talvez possa até dizer que aqui começa a fé, nessa história toda. Até aqui tínhamos uma descrição científica; fatos físicos, químicos, biológicos. Mas aqui estamos apostando que essa mesma luz que é vida e atividade mental-neuronal em nós, que essa mesma luz seja capaz de processar uma coisa chamada "sentido", não só reconhecendo sentidos como também criando e atribuindo, e não só criando e atribuindo mas também reconhecendo.
... E mais: apostando que, uma vez tendo virado as formas individualizadas que nós somos, a luz-que-somos-nós seja capaz de escolher - e isso até a escolha-limite que é a entre aceitarmos essa condição de seres capazes de efetiva escolha consciente ("potência de tornar-se filho", ou seja: de ter em si a mesma natureza do pai-do-escolher, da matriz universal da voluntariedade) ou nos deixarmos de fora desse grau superior de responsabilidade.
- Pára, pára!... Quer que eu fique louco com tudo isso de uma vez?
- Tudo isso? Mas foram só dois passinhos pequenos... E o mais importante deles ainda está por vir.
- Será que eu dou conta?
- Claro; já atravessamos o campo e estamos na boca da área...
- !
- Mas antes de partir pra finalização eu preciso ressalvar uma coisa, sobre o que eu estava dizendo: não pense que estou entrando pelas concepções usuais de pecado-e-redenção. A coisa me parece muito mais simples: temos luz-entendimento suficiente para, querendo, reconhecer como são as coisas, "sem engano" (ou pelo menos para ir fazendo nosso caminho gradual na direção disso), mas podemos ignorar, não acolher a luz que temos em potência. Escolher a inconsciência, ou a consciência enganosa. Não consigo imaginar Deus querendo nos fritar por isso. Mas por outro lado é grande a chance de que a consciência enganosa que escolhemos nos leve a tentar passar em portas apenas pintadas na parede.
- Entendo...
III
- E agora o principal: "e o lógos se fez carne e acampou em nós".
- Acampou em nós?? Que papo é esse? Não é "e habitou entre nós"?
- Uma das tiradas mais brilhantes da Bíblia inteira é jogada fora com esse pobre verbo "habitar". Está escrito que o lógos se estabeleceu com a sua tenda - e você sabe o que isso significa dentro do contexto cultural judaico, não? Aliás, é só nessa fala que a herança judaica entra em cena, até aqui estávamos na mais grega das discussões... Enfim, a tenda...
- Sei, a vida dos judeus como um povo organizado, com sua própria lei, começou no tempo em que viveram em tendas, no melhor estilo acampamento dos sem-terra, saindo do Egito e ocupando pouco a pouco a terra de Canaã...
- Sim, mas no meio das outras havia uma tenda especial: a que abrigaria o próprio Deus de Israel, em duas formas...
- ?
- Em forma de pura força, com o suporte físico da Arca da Aliança, e na forma do discurso, da fala dessa força, traduzido em palavras humanas por Moisés e registrado por escrito em tábuas de pedra: A Lei. Por uns 200 anos esse conjunto Arca-Tábuas viveu numa tenda, e com ele a consciência do povo de Israel - tanto consciência de ser um povo como consciência no sentido de código do que seja certo e errado.
... E agora esse João se atreve a dizer: "e a Fala Divina se fez carne", não mais pedra, "e fez sua tenda em nós".
- Não é "entre nós", "no meio de nós"?
- A palavra grega permite as duas leituras, "em" e "entre", e desconfio que as duas leituras estão certas ao mesmo tempo - tanto quanto somos ao mesmo tempo seres individuais e sociais.
... Enfim: apesar de João dizer "a vida era a luz dos seres humanos" (talvez não por acaso com o verbo no passado), parece que há muito se havia estabelecido um dualismo, uma certa oposição, entre palavra-luz e carne-vida - e com isso um divórcio entre pensamento e ação.
... E antes que você me diga que isso é apenas a forma grega de ver o mundo, vou lhe dizer onde essa dualidade aparece de forma particularmente intensa e comovente: na concepção de ser humano dos guaranis.
... Na concepção guarani a alma-fala que habita em nós é responsável não só pela fala como também pela nossa posição vertical e pelo nosso comportamento ético-social - mas além dela também nos habita uma alma-animal. O rompimento de certos preceitos leva a alma-palavra a se afastar e nos deixa vivos porém animalizados: perdendo o eixo vertical, grunhindo ou urrando, incapazes de participar da comunidade humana. Um desses preceitos é o de jamais comer o caça no mato, e sim levá-la sempre para a partilha, a comunhão. Se traio a comunidade humana, sua virtude me abandona: é ilusão que alguém possa viver só para si e permanecer humano, pois ninguém é humano só por si.
- Que fantástico... Tem até Vygotsky e Luria aí no meio...
- Você desculpe que hoje não dá tempo de a gente escarafunchar em detalhe as mil possíveis relações... Agora só quero focar em que João me parece falar de um projeto de radical transgressão dessa dualidade: fala das intenções da Palavra-Consciência de ocupar em nós o potencial que existe para isso nos próprios processos biológicos; ultrapassar o estado "mente sem corpo comanda processo biológico cego", mirando para um ideal em que a corporalidade inteira participe dos processos da consciência, e que com isso também a consciência seja mais e mais una com a capacidade de agir.
... E por isso se faz carne - carne mesmo, músculo... - pois não existe ação nossa que atinja o mundo se não com a participação de músculos, mesmo que sejam os dos braços quando digito este texto, a língua (que é músculo) quando falo, os dos olhos quando demonstramos interesse por alguém.
... O que temos é, enfim, um ideal de integridade - mas, além de integridade, também de autonomia: é em cada um de nós que o Discurso-Responsável-pelo-Mundo quer estabelecer sua tenda irradiadora de consciência; é na carne-ação de cada um de nós que ele quer se tornar.
- E você com isso dispensou Jesus Cristo?
- De jeito nenhum. Só que eu tenho certeza de que hoje, depois de tanta coisa terrível que foi feita em associação com esses dois nomes humanos que você acaba de pronunciar, esse Jesus - ou a Palavra que atuou na forma dele - não faz questão nenhuma de ser mencionada por esses nomes. Essa Palavra prefere ser pronunciada na forma de ações.
- Mas, escuta aqui, você acha que Jesus era mesmo "encarnação da Palavra"? Isso não é uma crença que ainda por cima desfaz dos seguidores de outras religiões?
- Mas se eu estou dizendo que todo ser humano pode ser, por que Jesus não poderia?
- !
- Hahahaha, essa virada do laço pelo avesso você não esperava, né?
... Mas entendo que, por causa dos horrores que eu já mencionei, seja justificada uma resistência ao nome histórico dele, justamente por parte das pessoas mais consciente e mais morais. Por isso falei de chegar a uma compreensão que vincula diretamente a Palavra-Consciência e a Ação, sem passar pelas palavras-nomes.
... Mas nem por isso precisamos excluir totalmente o personagem histórico das nossas considerações... Segundo o mesmo João, esse Jesus teria dito "aquele que põe fé em mim (e aqui eu entendo: põe fé nisto que eu estou sendo) fará as mesmas coisas que eu, e ainda maiores". Está claro que ele não teve nenhuma pretensão de exclusividade, como quiseram entender depois. E aí acho que em reconhecimento a isso o mínimo que a gente poderia fazer é também não excluir...
- Mas essa compreensão dele é tão rara... Será que você não está completamente sozinho nisso?
- Não sei se isso importa muito... mas, em todo caso, totalmente sozinho eu não estou: dê uma lida por exemplo em O Grande Inquisidor, uma sub-história inserida dentro do romance Os Irmãos Karamázov: minha impressão é que Dostoiévski estava enxergando precisamente a mesma coisa, sem tirar nem pôr.
- E o Natal, monge Josefus? O que é que a gente faz dele?
- Olha, eu sou da opinião que você deixe cada um fazer o que quiser... Você sabe que o Lógos não está nem aí para que celebrem sua encarnação numa festa desse tipo; que a verdadeira celebração é realizar de novo essa encarnação o tempo todo - atualizá-la, como dizem os estudiosos de religiões e mitos, só que aqui não apenas simbolicamente como as religiões costumam fazer, e sim em ações de alcance real.
... Eu diria que estamos celebrando desse modo cada vez que conseguimos realizar as seguintes situações ou qualidades:
Razão que liberta
Amor que não deixa que a liberdade se torne
abandono e falta de conexão
encarnados em conjunto em Ação real neste mundo.
... Ou, um pouco mais simples
Razão que liberta,
Amor que une em liberdade,
encarnados em Ação real neste mundo.
... Ou ainda:
Autonomia (cri)ativa,
que assume responsabilidades pelo mundo
voluntariamente, por amor
respeitando a liberdade alheia,
não no passado, mas em cada um de nós, agora.
... Mas vou lhe dizer uma última coisa: se você também quiser falar disso na época de Natal, por que não? Com certeza pode ser um enriquecimento desse momento...
... desde que você invente um jeito de não fazer o pessoal ter que passar por isso pra chegar na ceia e na farra, senão a humanidade vai pegar justo ódio e repulsa por aquilo que seria a sua evolução. Definitivamente, discurso que se faz chato não pode ser o mesmo de que eu estava falando!!
- Pode deixar, monge Josefus!
- Escuta meu amigo, que tal a gente atacar aquela comidinha ali, abrir um vinhozinho, e você me chamar de Zé?
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São Paulo 25.12.2008