Acredite nos que buscam a verdade... Duvide dos que encontraram! (A.Gide)

29 março 2008

ESSAS HORAS EM QUE NÃO SE AGÜENTA MAIS PALAVREAR

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                   PAROLE
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estou farto de café e de palavras.
quero passear na beira de um rio
mas tenho que ganhar a vida.
      parole,  parole,  parole!
olhos curtos e uma bunda quadrada.
Botucatu, 1989 - diante da tela do micro
do Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural
P.S.: 
Costumo dizer que as duas coisas que mais gosto de fazer na vida são ensinar e escrever. Que eu respondo afirmativamente e sem hesitação à pergunta que Rilke recomendou que o jovem poeta que lhe escrevia se fizesse com honestidade: "eu morreria se me impedissem de escrever?"
Apesar disso, tem horas em que as palavras saturam. Ontem terminei a tradução de um livro com que me batia há mais de um ano. Pensei que hoje iria responder a todos os comentários que têm sido feitos neste blog, e a outros também por e-mail, todos altamente estimulantes. Não consegui...
Em lugar disso, sonhei esta noite que caminhava no mato. Que tinha me mudado pra um lugar onde podia andar no mato sempre, e escapar mais fácil com meu carro (no sonho eu ainda tinha carro...) da gravidade jupiteriana da Grande São Paulo pra qualquer outro lugar. E à tarde, mesmo acordado, me peguei sonhando de novo: caminhava descalço pelas praias de uma ilha com um amigo de longe, sem pressa de chegar em lugar nenhum...
Vou tentar de novo amanhã. Mas se ainda demorar um pouco... desculpem, amigos: é que no momento estou mesmo "farto de café e de palavras". Isso sempre termina passando, eu sei - mas, afinal, é preciso dar ao momento o que é do momento, não é mesmo?  
(A propósito: alguém teria aí uma manga bem cheirosa e suculenta para trocar por esta xícara de café?)
P.S. do P.S.: será que todo mundo entendeu o poema? Afinal, não sei se ainda há quem conheça essa música tão famosa nos anos 60, daquela cantora estranha, a Dalidá: Parole, parole, parole...
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23 março 2008

Filosofia do Convívio como o PÓS PÓS-MODERNO necessário...



Já é de novo o "fim-de-semana teórico" deste blog... e eu nada de achar tempo de escrever as respostas a vários questionamentos que foram levantados quanto a postagens anteriores...

Mas alguma coisa eu prometi que ia postar todo fim-de-semana, não é? Então vai aí, sem muita explicação, o primeiro capítulo de uma nova apresentação introdutória da Filosofia do Convívio (ou Pluralismo Radical)... sobre a qual explico mais durante a semana. Vai lá:


No final do século XX tornou-se comum dizer que havíamos entrado numa "condição pós-moderna", em que não existe mais nenhum esquema explicativo absoluto, de modo que de certa forma "vale tudo".
De modo bem simplificado, é essa a tese central do livro de 1979 do francês Jean-François Lyotard (1924-1998), chamado O pós-moderno na primeira edição e A condição pós-moderna nas seguintes.
Naturalmente muitos contestaram até que exista alguma coisa que possa ser chamada pós-modernidade, enquanto outros autores propunham também outros traços para caracterizá-la – por exemplo Jean Baudrillard (1929-2007), que apontava a vida pós-moderna como dominada por simulacros.
Olhada com seriedade, a idéia de Lyotard não é porém nenhuma bobagem. Sobretudo, apresenta uma característica interessante: quando mais for contestada, mais estará comprovada – pois afirma justamente que não existem verdades seguras e fora de contestação!
Lá por 1995 tive a oportunidade de ouvir um professor doutor da PUC-SP falando com entusiasmo dessas concepções, mostrando o patamar superior de liberdade que havíamos atingido com isso –
... e aí lhe dirigi a pergunta: "professor, se agora de certa forma vale tudo, com que base poderemos dizer que as propostas do nazismo não valem? Que critério restou para explicar por que elas, ou outras semelhantes, não devem ser aceitas? Ou então elas devem ter lugar como quaisquer outras?"
Para minha surpresa, esse experiente professor – que apesar disso tenho fortes motivos para respeitar e estimar – ficou perturbado e terminou dizendo algo como: "É, de fato, a teoria não prevê isso. É preciso pensar essa questão."
Naquele momento eu achava ­– e continuo achando – que já sabia a resposta, mas teria sido bem deselegante, anti-ético mesmo, pretender "cortar a bola" na palestra de outro professor, ainda mais não tendo nenhum dos seus títulos. E além disso seria imprudente, pois na ocasião eu ainda não tinha nada escrito e muito menos publicado sobre essa resposta, a que dou o nome de Princípio do Pluralismo Absoluto.
Tive porém muitas oportunidades, antes e depois, de apresentar publicamente essa resposta, e observei que isso costuma ter um efeito ambíguo: por um lado a resposta convence; sua lógica é auto-evidente. Por outro lado, porém, parece causar certa perplexidade, e até mesmo irritação, porque é simples demais – e nos acostumamos a só apostar no complicado.
Confesso que eu mesmo me sinto extremamente perplexo de que um ponto tão pequeno possa ter conseqüências tão vastas, mas qualquer um que se dê o trabalho de refletir seriamente sobre essas conseqüências verá que o Princípio do Pluralismo Absoluto realmente dá conta do recado de preservar a liberdade plural conquistada pela pós-modernidade (o estado de maior liberdade que o ser humano já conquistou até hoje) protegendo essa liberdade de si mesma, impedindo que ela se auto-destrua –
... e, além disso, dá conta de uma infinidade de outras questões – pois quase que sem perceber acerta na raiz de onde brotam grande parte dos galhos que afligem a humanidade.
Por isso o chamo também de Pluralismo Radical – no sentido de Marx e de Paulo Freire: porque se dirige à raiz.[1]



[1] Karl Marx (1818-1883) e Paulo Freire (1921-1997) usam a palavra "radical" em sentido positivo, reservando a palavra "sectário" para o sentido negativo que se costuma atribuir a "radical".




[1] Karl Marx (1818-1883) e Paulo Freire (1921-1997) usam a palavra "radical" em sentido positivo, reservando a palavra "sectário" para o sentido negativo que se costuma atribuir a "radical".

16 março 2008

postagem reflexivo-poética de um fim-de-verão gelado

Revendo a poesia de anos passados me vem certa impressão de que existe uma melancolia própria do mês de março, que eu ainda não havia associado claramente com o mês.
Ou será que já? Talvez tenha a ver com o "espírito de quaresma". E nem sei como é que a tal quaresma pode ter "pegado" no Hemisfério Norte, pois me parece uma coisa bem própria do ciclo do ano aqui, no Hemisfério Sul:
... depois de um semestre de escalada crescentemente frenética, lá pelo Natal se havia alcançado um platô, um patamar ao sol - às vezes até à beira d'água - para finalmente desfrutar um pouquinho do que a vida no Planeta Terra também pode ter de bom: o verão!
Isso dura até a época Carnaval, cujo nome não por acaso costuma ser interpretado como "adeus à carne" (mesmo que a verdadeira origem provavelmente seja outra).
Aí a quaresma: quarenta dias (número que no simbolismo antigo se refere sempre à um período de expiação do passado e preparação para outra fase) para ir se conformando com o fato de que o verão não dura mesmo para sempre, e que estamos começando mais um ano de dura batalha...
Para culminar, vem a sexta-feira que a tradição reservou oficialmente para se morrer de paixão - no sentido mineiro e latino (romano) da palavra: padecimento, agonia.
E aí no terceiro dia deve vir a festa da ressureição da vida - mas, estranhamente, isso só parece caber direito nesta época no Hemisfério Norte: afinal lá é começo de primavera, gelo quebrando, flores brotando do chão por entre a neve que derrete...
E aqui, a gente, como fica? Haja força para celebrar ressurreição quando se entende que agora o verão acabou mesmo e que, no mais das vezes, nas nossas vidas não resta mais que baixar a cabeça e trabalhar... pra pagar as contas que o verão deixou!
Como celebrar uma Páscoa por aqui? Pra mim, pelo menos, definitivamente não é terminando de arruinar o fígado com um monte de chocolate, para alegria dos supermercados e das farmácias, e para uma ranzinzice ainda maior no meio do trampo do dia seguinte. Sei lá, acho que por aqui podemos celebrar a Páscoa no máximo como uma festa de esperança... de afirmação de que apostamos que a vida ainda vai ressuscitar, sim, lá mais adiante... mas sem mentirmos pra nós mesmos que já estamos saltitantes de alegria...


*
No fim de março de dois anos atrás eu estava morando sozinho na cidade de Praia Grande - mais à beira do brejo que da praia, é bom esclarecer - em um galpão bastante charmoso que um ano e meio antes os jovens do movimento Trópis haviam erguido com as próprias mãos. Mas todos os nossos projetos por lá haviam dado pra trás. Todo mundo tinha vindo embora pra São Paulo.
As chuvas do fim do verão tinham enxarcado muito daquela construção que desde o início se pretendia provisória; paredes de placa OSB apodreciam com lindas flores de fungos brancos; roupas e livros preciosos apareciam manchados para sempre de um mofo preto que parece ser especialidade do litoral, depois de enxarcados por goteiras discretíssimas que eu nem tinha chegado a perceber; devastadores buracos de cupim apareceram no velho e querido piano Bechstein. Não havia quem ajudasse, e nem adiantava tentar arrumar, pois os proprietários do terreno já haviam avisado que não renovariam o comodato, e que em agosto teríamos que cair fora de lá.
Foi no meio disso tudo que escrevi o que creio ser um dos poemas mais desalentados da minha vida... que resolvo compartilhar aqui, neste março sem goteiras mas em que o mofo parece ter tomado conta dos ossos por conta do verão mais broxa dos meus 51 anos de existência, pródigo em dias chuvosos e frios, cujos dias exuberantes e de calor puderam se contar nos dedos das mãos...
Voltando a 2006, seis meses depois (na boca da primavera...) escrevi um poema bem diferente - que assumia o "ponto zero" com orgulho e como possibilidade do começo de algo novo mais autêntico, sonhado e construído com menos ilusões...  Mas esse outro poema vai ser objeto de outra postagem mais à frente, já um tanto pensada mas ainda não amadurecida.

*
Por agora, antes de passar ao poema e sair, quero mencionar um livro fantástico que descobri há poucos dias, e que no fundo tem a ver com isso tudo. Deixo claro que não concordo com o autor em tudo, principalmente em seus textos mais recentes. Mas ainda assim não posso deixar de tirar o meu chapéu para suas realizações como filósofo: o Rubem Alves. O livro em questão é A Gestação do Futuro, escrito originalmente em inglês e publicado nos EUA em 1971 como Tomorrow's Child (aqui saiu em 1987).
É interessante notar que a partir da época do poema abaixo fui mergulhando numa fase de crescente nitidez na percepção intelectual da realidade... e de crescente paralisia prática.
Me vi num impasse: não estava disposto a abrir mão da clareza conquistada trocando-a por nenhum dos tantos "analgésicos psicológicos e espirituais" que há no mercado - sistemas de ilusão bem-intencionados mas ainda assim indefensáveis - mas ao mesmo tempo não há sinais de que eu esteja pra morrer e portanto não podia continuar na paralisia... (RISOS!)
E aí de repente topei com o livro do Rubem Alves, que consegue recolocar a Esperança num lugar digno e com base intelectualmente sólida - mais sólida e ampla que a de qualquer outro que já tenha visto se dedicar ao assunto. Acho até que não seria exagerado referir-se ao Rubem como "Filósofo da Esperança" - e não só por ter nascido na cidade de Boa Esperança em Minas Gerais.
Com certeza voltaremos a isso aqui, mas... por agora vamos para um pouco de poesia (ah!, "de tudo resta um pouco" é referência a um poema de Carlos Drummond de Andrade; e se você não sabe quem é Godot, é só perguntar! Problema nenhum!)
*
        PRAIA GRANDE 31.03.2006

Parece que está tudo podre e quero dizer "desisto".
Culpa de ninguém, só do tempo.
Melhor deixar tudo e começar do zero?
Mas quem enterrará o decomposto,
porá fogo no seco?
Seguirei por aí
mais um construtor de ruínas?

E quanto a recomeçar... sem escudeiro ou par
é perda de tempo pegar na espada
(ou esquadro, martelo, enxada).
Quê resta?

Se encolher no meio
da ruína em formação
esperando a graça
do desabamento ou incêndio em breve?

(Ou algum galope
desses que escuto ao longe
virá no rumo daqui
que não pra passar ao largo?)

(Como se eu não soubesse
que não restou cavaleiro
que não se chame Godot!)

(Ou valerá apostar
que de tudo mesmo resta um pouco,
até do bem?)

*

15 março 2008

desculpem, amigos vegetarianos, mas não resisti...

Gente, tenho visto na net o seguinte desenho super bem-intencionado como campanha pró-vegetarianismo, mas olhando bem não tive como não ver que a formulação se presta uma leitura um tanto diferente da intenção original... Aí vai (desenho + interpretação):
MORALIDADE: só coma o animal
que você ama... 
:-)
................................................
Ralf Rickli • arte em idéias, palavras & educação
http://ralf.r.tropis.org • (11) 8552-4506

11 março 2008

Meu atraso + um pouco sobre A ÉTICA DE QUE PRECISAMOS HOJE

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O último fim-de-semana era o da teoria... mas eu não consegui postar nada, pois estava tentando recuperar forças em Santos, na beira do mar...
Recuperar forças no fim das férias? - alguns poderiam perguntar ironicamente... ao que eu posso responder: "Como no fim? Esses 3-4 dias foram as minhas férias da virada 2007-2008..."
Enfim: há perguntas e comentários a responder, como os feitos aqui no blog pelos amigos Pedro Martins e Douglas A. Alencar, e outros feitos nos recados do orkut pela amiga que assina Brisa da Noite, residente no Pará... todos interessantíssimos, que rendem muito.
Mas essa vida de autônomo... 4 dias de férias já são seguidos por dias de aperto & correria!! Não posso me permitir redigir esses comentários antes de terminar mais um capítulo de tradução, ou melhor: tradu$$ão... :-)
Mas não quero deixar a semana teórica no vazio... e então resolvi transcrever aqui um trecho do artigo O Fantasma de Aristóteles que (com razão ou não) considero uma das coisas mais significativas que já escrevi, se não a mais. 
Por quê? Leia você mesmo e avalie... Quero dizer apenas que pretendo fazer uma versão de leitura mais simples, que não seja entrecortada por tantos parênteses e notas de rodapé... mas que isso significaria um ou mais dias de trabalho, o que está fora de questão no momento.
E ainda que o artigo inteiro se encontra em www.tropis.org/biblioteca/pc12-aristoteles.doc (ou zip no lugar de doc).  Abraços a tod@s!!!

12.4.2. A ética de que precisamos hoje: resumo

No capítulo 12.3 buscamos confrontar a Ética de Aristóteles com um corpo de idéias pelas quais optamos não por gosto arbitrário, e sim por crermos que fazem parte da ética de que precisamos hoje. Antes de prosseguirmos para considerações mais específicas, cremos que será útil um resumo de suas características principais:
•     Uma ética baseada não na aplicação de regras pré-determinadas, mas no discernimento e opção do indivíduo;
-  no discernimento da (ou pelo menos na aposta [1] na) organicidade universal, e com ela, da teia das conseqüências das ações; [2]
-  na opção primeira de empregar nossa capacidade empática (com‑paixão) para informar nossas demais opções. [3]
•     Uma ética que, a partir disso, não hesite em optar por afirmar a dignidade universal do humano e em se empenhar por todos os meios em fazê-la valer [4] – o que, ao contrário da visão de Aristóteles, deve incluir:
-  uma valorização extra, compensatória, de todo trabalho tradicionalmente desprezado (como por exemplo e talvez emblema, o de faxineiros/as e lixeiros);
-  a educação do trabalhador intelectual para a humildade e responsabilidade social;
-  o poder de desfazer o véu de denegação que encobre dentro de cada um a distinção entre o necessário e o voluptuário,[5] de modo que a capacidade empática seja capaz de revelar a cada um, porém sobretudo ao próprio opressor, a indignidade do bem-estar baseado na opressão.

Cremos que é basicamente uma tal ética que pode viabilizar antes de mais nada um convívio inter-humano digno, e a partir daí o enfrentamento de quaisquer outras questões da humanidade.

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[1] No uso de Paul Ricoeur (segundo Rubem Alves), ou seja: como tradução da palavra "fé": não crença que denega a dúvida, porém ato de aposta existencial justamente quando na presença inexorável da dúvida – o que, embora talvez expresso com mais calor, não nos parece muito diferente do "como se" de Hans Vahinger (optar por agir como se tivéssemos certeza, mesmo sabendo que não temos).
[2] Que é o que nas filosofias da Índia recebe o nome de "lei da ação" ou, em sânscrito, carma. Embora também informe religiões, trata-se antes de tudo de um conceito filosófico e "com vida própria", não necessariamente vinculado a idéias como imortalidade, reencarnação etc.
[3] Escrevemos em 2001 no Manifesto do Reencantamento do Mundo (14, originalmente Rickli 2001): "Ética nascida não de regras, mas da percepção do brilho nos olhos do outro". E, relacionando isto já com o ponto seguinte, em um poema inédito de 1982; "você já olhou a luz que brilha / nos olhos daquelas mãos / que limpam a sua privada? / já? / não morreu de paixão?"
[4] Mais uma vez, isto pode partir de um sentimento de reconhecimento de algo dado, pré-existente como potencial (uma via reativa, possivelmente metafísica ou religiosa), ou não: pode partir simplesmente da decisão humana: "nós queremos que essa dignidade exista (quem sabe porque analisamos e julgamos melhor que seja assim), e se não existe vamos construí-la": via pró-ativa puramente ética – com possível recurso auxiliar à lógica mas sem submissão nem a essa: ato da vontade (opção) humana como soberana (antes de mais nada, ato de vontade inicial de se pôr em acordo pelo menos quanto a um mínimo indispensável ­– o qual porém provavelmente não brotará ou não será autêntico sem o discernimento inicial da organicidade).
[5] Na linguagem jurídica (apropriada aqui por brevidade): entre o que é a necessidade vital e o que é mero desejo. Adiantamos que em certa medida Aristóteles pode voltar a sem bem-vindo neste ponto, pela sua noção de educação das paixões.

02 março 2008

dois poemas ambíguos de um dia bissexto

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Este é o fim-de-semana poético deste blog, que se alterna com o teórico, fora as postagens ocasionais. Uma alternância POE/TEO, poderíamos dizer.

E desta vez, em lugar de buscar alguma coisa já "envelhecida nos barris", resolvo compartilhar duas doses de vinho extra-verde - aliás, talvez um vinho e uma cachacinha... -, brotadas justamente na manhã de 29 de fevereiro, como interrupção a uma pouco frutífera tentativa de produzir algo que pagasse as contas da virada do mês (um capítulo de tradução).

Irresponsabilidade, compartilhar trabalhos ainda por amadurecer? Provavelmente. Mas deu vontade... e lá vai:

MAIS UM ENSAIO (EM OBRAS)
SOBRE UMA LENDA PESSOAL

Trabalhando, deparo com as palavras: "local
de moradia". Tudo pára -
e me torno, inteiro, uma pergunta:
"onde
é a casa da minha alma, enfim?"

O farol da Rural Willys
de repente ilumina um alargamento da estrada;
espaço quase plano, arredondado feito um abraço;
uma terra solta e granulosa, gostosa de brincar.
A estradinha em meio ao mato
vinha sufocada de escuridão.
É aqui! É aqui!
Uma cerca de madeira
sugere casas e vidas por trás.
Uma tábua deitada sobre dois cepos:
lugar de repouso e conversa junto ao largo da estrada,
e duas árvores frondosas,
domésticas, amigas dos humanos,
diferente das que reinam prepotentes
ao longo da estrada sem fim.

É aqui! É aqui!
Aqui minha alma está em casa,
aqui eu quero ficar.
Aqui tem cama fofa que exala a alfazema
colhida ali no jardim.
Aqui tem fogão com chapa sempre quente
e o cheiro do café
nunca abandona ar.
Aqui alguns grandes conversam por perto
enquanto, por entre frutas mordidas,
a gente reina com empenho
sobre uma cidade de areia e pedrinhas brilhantes,
outra de toquinhos de madeira,
e outra, e ainda outras
que pra existir
nem carecem de materiais.
Qualquer coisa,
tem os grandes ali pra dar um jeito,
nossos serviçais.

E no entanto o carro não pára.
Prossegue em solavancos, frio e desalento
cruzando a treva que faz caras monstruosas
até um tope, uma curva, e mais estrada,
outra curva, outro tope, e mais estrada,
uma estrada de nunca, nunca,
nunca chegar.



UMA LETRA DE SAMBA
Pois é, amor...
acabou o café, amor...
samba de Serginho Cachaça
/ Gunnar Vargas, 2007
pois é, amor, eu sei
é o aluguel, é a mãe, o irmão doente,
é a prestação, é o pão, é sei lá o quê
eu sei que quem trabalha
vive sempre no tormento
mas assim já é demais:
você trocou o nosso amor
                por um aumento

pois é, amor, eu sei
você tentou, quem não deixou foi o gerente
de repente tão bonzinho com você
e eu te esperando sempre
paciente feito um jumento -
mas agora foi demais (, meu bem) :
você trocou o nosso amor
                por um aumento
 .